Outubro 2017. The New York Times e The New Yorker publicam dossiês que causariam uma onda avassaladora de denúncias contra alguns dos homens mais poderosos do entretenimento mundial. Com base nos relatos de dezenas de mulheres, entre elas Angelina Jolie e Gwyneth Paltrow, Harvey Weinstein, um dos produtores mais influentes da indústria cinematográfica, foi demitido do estúdio fundado por ele e expulso da Academia do Oscar.
Em decorrência do escândalo, a atriz Alyssa Milano convocou, através do twitter, outras mulheres (e homens!) a compartilharem suas histórias de abuso sexual através da hashtag #MeToo, “Eu Também” em Português. No Brasil, as denúncias foram fortalecidas por diversas atrizes, cantoras e mulheres em geral, através do projeto #NenhumaAMenos. Na França, a campanha anti-abuso foi batizada de #BalanceTonPorc ou “Denuncie seu Porco”.
E na Coreia do Sul?
Entretanto, a Coreia do Sul manteve-se calma e silenciosa por meses. Em uma sociedade extremamente patriarcal, mulheres famosas têm altas expectativas postas sobre si e posicionar-se publicamente sobre temas polêmicos é não só raro, mas visto com maus-olhos.
Em 2009, o suicídio da atriz em ascensão Jang Ja-yeon chocou o país. Ela estava no ar com o famoso drama “Boys Over Flowers” e deixou pra trás uma carta de sete páginas, descrevendo como sua agência a havia forçado a oferecer favores sexuais a executivos do alto escalão do entretenimento. Nomes poderosos foram citados, informações detalhadas foram dadas e uma investigação foi instaurada. Contudo, ninguém foi preso. O presidente da agência de Jang e seu manager foram apenas advertidos e todos os executivos citados seguiram com suas vidas sem nenhum problema.
Jang Ja-yeon tinha o sonho de se tornar uma grande atriz, mas a sociedade coreana tende a ver celebridades como meros animadores e, muitas vezes, como produtos. “O publico não quer que esses ‘produtos’ tenham voz e opiniões próprias” diz Lee Taek-gwang, professor de cultura na Universidade Kyung Hee.
Por essa razão, foi um choque quando durante seu discurso após receber o Prêmio de Top Excelência no 2017 KBS Drama Awards em Dezembro, a atriz Jung Ryeo Won fez o impensável: entre lágrimas, abordou o pesado tema de abusos sexuais.
“Nosso drama ‘Witch’s Court’ lidou com o problema de crimes sexuais que se instalou em nossa sociedade como um resfriado medonho, mas os perpetradores não são expostos. Através desse drama, nós queríamos que leis contra violência sexual fossem reanalisadas para que os criminosos sejam punidos e que as vítimas tenham a oportunidade de se pronunciar e serem ouvidas. Vítimas hesitam em se pronunciar porque a sociedade as humilha e não as apoia. Eu espero que nós tenhamos conseguido, através do nosso trabalho, oferecer alguma forma de conforto a essas pessoas”.
Talvez tenha sido esse o incentivo que a sociedade coreana precisava para começar a discutir o tema. Em Janeiro deste ano, durante uma entrevista televisiva, Seo Ji-hyun, uma promotora pública, denunciou Ahn Tae-geun, um oficial do Ministério da justiça à época, de abusá-la sexualmente durante um funeral em 2010. Ela ainda acusou o Escritório da Promotoria de Norte-Seul de tratamento injusto ao transferi-la para uma filial menor e afastada para calar suas denúncias contra o promotor veterano.
“Eu sofri com a consciência pesada de que talvez eu merecesse o que fizeram comigo. Levei oito anos para entender que não era minha culpa, essa entrevista hoje é para dizer a todas as vítimas de que não é culpa delas. (…) Na hora, eu não pude expressar minha oposição e ultraje, pois haviam vários oficiais e pessoas importantes e todos agiram como se nada estivesse acontecendo. E eu não podia acreditar que aquilo estivesse acontecendo, pensei que eu estivesse alucinando”.
O #MeToo na Coreia do Sul e as ações de repúdio
A corajosa entrevista de Seo Ji-hyun foi o estopim para o lançamento do #MeToo na Coreia do Sul. Em poucos dias, nomes importantes da política, teatro, poesia e TV foram denunciados, o primeiro deles sendo o mundialmente reconhecido poeta e ex-monge budista Ko Un. A revelação veio da também poetisa Choi Young-mi através do poema “Monstro” que descreve uma situação em que autora foi agarrada e humilhada por um poeta sênior. Apesar de não citar nomes, a descrição dada por Choi levou a mídia a apontar na direção de Ko, que foi então acusado de masturbar-se em público e utilizar-se de sua influência para obrigar jovens escritoras a oferecer-lhe favores sexuais. O poeta de 84 anos renunciou suas posições nas Universitades KAIST e Dankook, terá seus poemas retirados de todos os livros didáticos, uma parte da Biblioteca Nacional dedicada a ele será fechada e todas as exposições dedicadas a seu trabalho em exibição em Seul serão canceladas.
O segundo a cair foi o roteirista e diretor de teatro Lee Youn-taek, denunciado pela diretora Kim Su-hee. Em seu Facebook, ela descreveu que durante seus tempos de atriz, foi forçada por Lee a massagear suas partes íntimas. A revelação abriu espaço para que outras mulheres se pronunciassem contra a conduta sexual predatória de Youn-taek, as acusações vão de estuprar atrizes a obriga-las a fazerem abortos. A lista continua com nomes importantes do ramo cultural: foram acusados Yoon Ho-jin, renomado director de teatro musical; Kim Seok-man, diretor teatral e professor da Universidade Nacional da Coreia; o bailarino de música tradicional coreana Ha Yong-bu; e Oh Tae-seok, também diretor teatral e professor do Instituto de Arte de Seul. Todos os citados renunciaram de suas posições.
No ramo musical, o rapper Don Malik admitiu usar sua autoridade na relação fã-artista para obter favores sexuais de uma aluna do Ensino Médio. No mesmo dia, o presidente da agência Daze Alive, Jerry K, anunciou que Malik havia sido expulso e pediu desculpas por falhar com os fãs de seu artista.
As acusações de assédio sexual chegaram ao setor televisivo quando o ator veterano Cho Jae-hyun foi acusado por uma funcionária de uma emissora de TV, que diz ter sido empurrada contra uma parede, beijada e tocada em seus seios e por dentro de sua calça durante as filmagens de um drama em 2016. Ele ainda haveria dito “Você tem algo que me excita. Você deveria sair comigo. Eu conheço Busan muito bem, você deveria viajar até lá comigo”. A vítima teria conseguido escapar, mas continuou sendo encurralada e tocada por Cho sempre que se encontravam, o que a fez pedir demissão.
Pouco depois do relato se tornar público, a atriz Choi Yul postou em seu Instagram uma foto do perfil de Cho Jae Hyun com a legenda “Eu estava esperando que você fosse exposto. Foi mais cedo do que esperei. Esse é só o começo. Há muitos lixos como você por aí. Não posso dizer muito, pois tenho muito a perder, mas até o dia em que todos os pervertidos desapareçam #metoo #withyou”, citando a hashtag criada por membros da indústria teatral para expressar suporte às vitimas de abuso sexual.
Cho é ainda acusado de, junto ao renomado diretor de cinema Kim Ki-duk (que há anos e acusado de comportamento inapropriado), atrair uma jovem atriz a um quarto de hotel com a desculpa de ‘discutir um roteiro’ e estupra-la em turnos enquanto compartilhavam histórias sobre outras atrizes com quem haviam feito o mesmo. Cho renunciou sua posição como diretor do Festival Internacional de Documentários DMZ e foi retirado do drama Cross.
O ator e comediante Oh Dal-soo foi citado em um fórum online, a vítima alega que este tocou suas “partes íntimas” enquanto olhada em seus olhos. Ela conta ter sido tão traumatizada pela situação que tem tomado antidepressivos pelos últimos 20 anos. A acusação ainda relata que Oh é conhecido por assediar seus juniores e que esperava que sua punição fosse severa. Oh Dal-soo é protegido e amigo íntimo de Lee Yoon-taek.
O #MeToo chega às escolas sul-coreanas
O caso mais proeminente, contudo, só veio a público com o início do movimento ‘School Me Too’ que deu abertura para que pais e alunos discutissem abertamente abusos sofridos dentro de escolas e universidades. Foi revelado então que o ator Jo Min Ki havia sexualmente assediado diversas estudantes enquanto professor da Universidade de Cheongju, e que uma investigação interna havia sido aberta pela instituição. A agência do ator, Will Entertainment, foi rápida em negar as acusações e defini-las como rumores, ele ainda emitiu uma declaração em que dizia que seus toques e palavras eram uma forma de carinho e encorajamento e que sentia muito que as alunas houvessem interpretado suas ações como assédio.
Entretanto, no dia 20 de fevereiro, a atriz Song Ha-neul publicou em seu Facebook um post que descrevia os anos de assédio de Jo Min Ki contra suas alunas.
“Eu tentei esquecer o passado, mas após ler que Jo Min ki se sente injustiçado, minha raiva transbordou. (…) Eu não sou uma tola que não entende a diferença entre encorajamento e molestamento. O que as alunas da Cheongju passaram é claramente assédio sexual. Eu tive medo de me pronunciar e ainda tenho muito medo, mas se essa controvérsia for calada, muitas outras vítimas viverão em medo, como eu vivo agora”.
O que se segue é um relato detalhado e doloroso das diversas vezes em que alunas foram convencidas a comparecer ao hotel do ator e então embebedadas, ameaçadas e abusadas física e emocionalmente. Ela também conta sobre eventos em karaokês, quando Min-ki forçava alunas a dançar em seu colo e as beijava. Tais acontecimentos são definidos por ela como um ‘segredo aberto’, considerado por muitos como parte da vida universitária dos estudantes do curso.
“O professor Jo Min Ki fez incontáveis comentários sexuais para alguns alunos e coisas muito piores para outras. Quanto tentei falar sobre isso com outras pessoas, elas me fizeram sentir como se fosse minha culpa. Mas agora sei que não é. Minhas amigas e colegas que passaram por tanta dor não deveriam estar sendo culpadas. As vítimas não devem mais se calar e este criminoso não deve ser protegido”.
O testemunho causou ultraje por todo o país e a Will Entertainment foi rápida em retificar a declaração anterior e anunciar que Jo Min Ki não só cooperaria integralmente com o processo então aberto pela polícia, como se retiraria do drama ‘Children of a Smaller God’. Ainda assim, o patriarcalismo e a visão de que homens mais velhos e poderosos devem ser respeitados, levou muitas pessoas a duvidarem do relato de Song Ha-neul e das outras estudantes anônimas.
No final de fevereiro, as mesas viraram e outra mulher se pronunciou contra Min Ki, dessa vez incluindo fotos e mensagens do assédio praticado contra ela. A Will Entertainment mais uma vez mudou seu posicionamento e decidiu encerrar o contrato com ator, enquanto a Polícia anunciou que após levantamento e colhimento de testemunhos, havia provas suficiente para que Jo Min Ki fosse convocado para investigações.
Durante este período, o ator manteve-se em silêncio, mas outras denúncias causaram muita repercussão. O político promissor An Hee-jung, conhecido por seus discursos feministas e devoção à esposa e dito possível sucessor do presidente Moon Jae-in, foi acusado de estupro por sua secretária e por uma pesquisadora de uma universidade local. Em outro caso, um grupo de médicos de um dos maiores hospitais do país apresentou uma denúncia formal contra um colega e em apoio a uma enfermeira que o havia apontado como autor de um assédio sofrido por ela em 2016. Também foi acusado de comportamento impróprio e predador o membro do quadro de diretores da Asiana Airlines, Park Sam-koo; comissárias de bordo da empresa seriam obrigadas a recepcionar o chefe com abraços, beijos e aceitar seus toques e carinhos.
Os movimentos #MeToo e #WithYou, entretanto, sofreram um forte baque em 09 de março, quando Jo Min-ki foi encontrado morto. Em uma carta de suicídio, pedia desculpas a Universidade de Cheongju e aos estudantes que, por acaso, houvessem se sentido humilhados por suas ações. A escolha de palavras levou muitos a entenderem que, mesmo em seus últimos momentos, o ator não admitia que tivesse praticado assédio, mas apenas um carinho mal interpretado. A consequência foi uma opinião pública dividida: de um lado repúdio à covardia do suposto assediador e de outro, pessoas simpáticas ao ator e que passaram a chamar o movimento de caça às bruxas.
Uma petição online pedia ao presidente sul-coreano, Moon Jae-in, que retratasse seu apoio ao #MeToo e fosse ao enterro de Jo Min-ki, uma vez que as palavras de incentivo da presidência às vítimas e denúncias pudesse ter sido um dos fatores de pressão que levaram ao suicídio do ator. Ao mesmo tempo, ativistas dos direitos das mulheres clamaram que outros acusados tivessem suas prisões declaradas como prevenção contra outros suicídios e culpabilização secundária de outras vítimas, realidade enfrentada por Song Ha-neul, que foi atacada por uma avalanche de comentários maliciosos após a morte de Min-ki.
Ao apontar que, no passado, a Coreia do Sul se manteve indiferente frente à morte de vítimas de violência sexual e doméstica e de que a morte de Jo tem recebido mais atenção que a de milhares de mortes anteriores, a frase “Jo Min ki foi assassinado por Jo Min ki” foi popularizada na internet e manteve em aberto a questão: qual será o futuro do movimento internacional de denúncias na sociedade sul coreana?
Por Jeiciane Torres
Fonte: New York Times, The New Yorker, Time, BBC, TheGuardian, Chosun, Yonghap, Huffington Post, Allkpop
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