Quando pensamos em inovações tecnológicas, quantas foram desenvolvidas por mulheres? E quantas foram pensadas para uso exclusivo delas? O Nüshu é uma resposta positiva para estas duas perguntas.
A criação desconhecida para um propósito nobre
Oriundo da China — mais especificamente do condado de Jiangyong, localizado na província de Hunan e próximo à região do Rio Xiao —, o Nüshu é um sistema de escrita desenvolvido por mulheres e utilizado para a comunicação entre elas. Com um nome que significa algo semelhante à “escrita de mulheres”, sua criação é desconhecida. Os principais estudiosos do sistema afirmam que seu uso pode ter começado durante a Dinastia Song (entre 960 e 1279 D.C) ou ainda no período da Dinastia Shang — há mais de 3 mil anos. Porém, apesar dos muitos anos de existência, o Nüshu só foi descoberto pelo restante do mundo em meados da década de 1980.
Apesar de não conhecermos sua criação, a importância do Nüshu é notória. Passada de geração para geração e entre amigas, sua existência é uma forma de rebeldia dentro de uma sociedade que negava oportunidades educacionais para mulheres. O Nüshu se tornou um meio importante para que uma cultura feminina fosse criada e documentada.
Zhao Liming, professora da Universidade Tsinghua e estudiosa do Nüshu, acredita que o sistema foi essencial para a sociedade da época, pois “permitia que as mulheres falassem com suas próprias vozes e lutassem contra uma sociedade machista”.
Caracteres próprios para dar voz a quem não tinha
Formado por caracteres adaptados dos originais chineses utilizados no dialeto local, o Nüshu é uma composição de pontos e traços de três tipos: horizontais, em formato de arco e de vírgulas. Seus caracteres são desenhados em traços bem finos que se assemelham a fios entremeados e cada símbolo representa uma sílaba.
Suas adeptas utilizavam o sistema para escrever autobiografias, cartas entre amigas e “sanzhaoshu” — votos de felicidades escrito para noivas recém-casadas. Seu uso se estendia também à tradução de poemas tradicionais e à composição de músicas folclóricas e outras sobre a rotina de uma mulher da zona rural e suas obrigações com a família.
Além dos registros em papel, o Nüshu era encontrado na forma de bordados feitos em roupas, lenços e cintos. Leques com os caracteres do sistema também eram comuns.
Os instrumentos para a prática do Nüshu são palitos de bambu com pontas afiadas e tinta — feita à época de forma improvisada com restos queimados deixados em panelas.
A bravura além da beleza
Em 2004, a morte de Yang Huanyi, escritora centenária e principal detentora do conhecimento atual sobre o Nüshu, intensificou a importância de proteger tamanho patrimônio cultural.
Ainda em 2002, o sistema foi adicionado ao Registro Nacional Chinês de Patrimônio Documental. A partir de 2003, o condado de Jiangyong passou a ministrar workshops sobre o tema. Finalmente, em 2006, o Nüshu foi oficialmente declarado como patrimônio cultural imaterial da China.
Com as ações para perpetuar a existência e a importância do Nüshu, Jiangyoung se tornou parte de um projeto do governo chinês de proteção cultural. As autoridades locais contrataram especialistas no sistema para preparar manuais e materiais didáticos que ensinam a importância do Nüshu, bem como seus valores e elementos culturais básicos.
Porém, por se tratar de um sistema local que sofreu forte influência dos dialetos da região, foi preciso unificar os caracteres utilizados. Encabeçado por Zhao Liming, o projeto de unificação avaliou aproximadamente 220 mil caracteres. A análise resultou em um conjunto de 397 símbolos que foram oficialmente aceitos pelos órgãos internacionais de padronização em 2015. Dois anos depois, em 2017, a China conseguiu aprovar uma proposta para incluir o Nüshu no Sistema Universal de Caracteres Codificados.
A preservação e proteção do Nüshu se mostrou um projeto social de dimensões gigantescas que encontrou forças no desenvolvimento cultural local. Entre seus entusiastas estão admiradores da caligrafia utilizada e pessoas com visão de negócio para explorar o apelo artístico do Nüshu. Muitos, entretanto, entendem a importância do sistema como alicerce de uma cultura tradicional chinesa exclusiva de mulheres.
E são as palavras de Zhao Liming que melhor expressam sua existência: “O Nüshu completou sua missão histórica — ser uma ferramenta cultural para a classe trabalhadora feminina mais pobre que não tinha acesso à educação. Além de uma bela caligrafia, o sistema também deixa uma lição de sabedoria e bravura para as futuras gerações”.
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Imagens: CPA Mediat Pte Ltd, Alamy, Xin Hu
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