A Coreia do Sul é um país marcado por paradoxos. Se por um lado figura entre as nações mais desenvolvidas do mundo, por outro ainda carrega fortes tradições que se refletem em uma sociedade extremamente conservadora. A adoção, por exemplo, é um assunto visto como tabu e cercado de preconceitos, tanto em relação à criança como à mãe. Onde o machismo ainda impera, ser mãe solteira é considerado uma grande vergonha, o que leva muitas mulheres a abandonarem seus bebês. Por outro lado, ter um filho que não carregue sua linhagem também é visto com maus olhos. Diante desse impasse, qual é futuro dessas crianças?
Por muitos anos, a Coreia do Sul carregava o selo de maior “exportadora de bebês” do mundo. Para se ter uma ideia, desde os anos 1950 cerca de 200 mil crianças foram adotadas por famílias estrangeiras, sendo que 150 mil desse total foram para os Estados Unidos. Os dados revelam dois fatos importantes: 1) a alta taxa de abandono de crianças e 2) o baixo número de adoções domesticas (dentro do próprio país).
O início do primeiro fenômeno citado pode ser explicado pelo preconceito contra mestiços (filhos de coreanas e soldados americanos) que surgiu com a Guerra da Coreia (1950 – 1953). O forte nacionalismo não soube conviver com a miscigenação que chegava. Com o tempo, a vergonha de ser mãe solteira fez aumentar o número de abandonos. Já o segundo pode ser explicado não só pela fraca economia local que acabou favorecendo a adoção internacional, mas também pelo fato de a adoção não ser bem aceita entre os sul-coreanos.
O Confucionismo ainda prevalece enraizado na cultura do país e, portanto, os ancestrais são extremamente valorizados. Criar um filho que não carregue a mesma linhagem sanguínea da família é motivo de vergonha, o que leva muitas pessoas a esconderem, inclusive de amigos e familiares, o fato de terem adotado uma criança. Mulheres chegam a fingir uma gravidez, o que explica o alto número de recém nascidos adotados, resultando em orfanatos repletos de crianças e adolescentes rejeitados. Desde 1950, apenas 4% das crianças foram adotadas por famílias sul-coreanas e 95% delas tinham menos de um mês – jovens o bastante para se passarem por filhos biológicos.
Além dos pais, as próprias crianças podem enfrentar obstáculos que surgem com a adoção. Essas dificuldades podem se estender inclusive para o campo profissional. Na Coreia do Sul, é muito comum que as empresas solicitem o registro da sua família, um documento que reúne todas as informações sobre seus parentes. Caso você não possa fornecer o registro, a empresa pode não querer contratá-lo.
Ao concorrer a uma vaga de emprego, também há outra questão que pode prejudicar as pessoas que foram adotadas. Se no ocidente a tradição é escrevermos às empresas sobre nossa formação acadêmica, habilidades e experiências profissionais, na Coreia os candidatos escrevem sobre a família, como a profissão dos pais, por exemplo, e o seu caráter é avaliado com base nesse histórico familiar.
Mudança na Lei
Durante as décadas de 60 e 70, a Coreia do Sul passou por um acelerado processo de industrialização e urbanização. O número de divórcios e adolescentes gestantes aumentou. As mães solteiras viram-se obrigadas a viver na miséria com o pouco, ou à vezes até inexistente, auxílio do governo.
Nesse período, a Lei Especial de Adoção já havia sido aprovada e estabelecia a criação de um processo legal para adoção, além de ter aprovado quatro agências responsáveis por esse processo. No entanto, falhas já surgiram logo no início. Muitos documentos eram fraudulentos em relação à saúde ou idade da criança ou sobre o consentimento da mãe em entregar o bebê. Era comum que tias e avós, por exemplo, entregassem a criança para adoção enquanto a mãe estava trabalhando (ou procurando um emprego), pois acreditavam que mãe e filho viveriam melhor separados.
Em 1980, a adoção já havia se tornado um negócio milionário para as agências. Segundo Eleana Kim, professora de Antropologia da Universidade da Califórnia, embora as mulheres não recebessem um pagamento direto, muitas agências de adoção forneciam abrigo para gestantes solteiras e cobriam suas despesas médicas com a expectativa de que a mulher concordaria em deixar seu filho ser enviado ao exterior. As agências inclusive acusavam as mães de serem egoístas caso quisessem ficar com o bebê. O próprio governo também se beneficiava do sistema, uma vez que cada criança exportada representava uma a menos para alimentar.
Com o tempo, toda a problemática envolvida na questão da adoção se tornou motivo de vergonha para o país e o governo sul-coreano prometeu reduzir o número de adoções internacionais fornecendo subsídio e benefícios extra de assistência médica às famílias sul-coreanas que adotassem. No entanto, não demonstrou qualquer interesse em prestar auxílio às mães solteiras para que ficassem com seus filhos.
Entre as medidas estabelecidas estão a maior restrição na lei de adoção internacional e a obrigatoriedade de registrar a criança antes de entregá-la. Desde 2007, foi determinado o limite de 10% de crianças que poderiam ser enviadas ao exterior anualmente. Elas também deveriam permanecer na Coreia do Sul por cinco meses enquanto as agências buscavam por uma família local antes de serem exportadas. Já a lei que obriga que o bebê seja registrado em tribunal foi aprovada em 2012. O objetivo era tornar o processo mais transparente e aumentar as chances de as pessoas adotadas encontrarem seus pais biológicos no futuro. Por fim, em 2013, a Coreia do Sul assinou a Convenção de Haia, que determina que as crianças devem ser adotadas preferencialmente em seu país de origem.
As medidas do governo para reduzir o êxodo de crianças parecia ter sido um sucesso, o número de adoções internacionais caiu significativamente. Por outro lado, as adoções domésticas também apresentaram queda desde 2012. Com a restrição das leis, os tribunais agora estavam envolvidos no processo de adoção e eram responsáveis por determinar se os pais eram elegíveis ou não. Os critérios, porém, eram bem controversos: um juiz chegou a recusar um pedido de adoção porque um dos pais era vegetariano.
Outra consequência negativa das mudanças de leis foi o aumento no número de crianças abandonadas. Segundo estimativas da polícia, a taxa aumentou de 127 (2011) para 225 (2013). Se antes os pais podiam simplesmente deixar seus bebês anonimamente em agências de adoção, agora eles eram obrigados a registrá-los. A obrigatoriedade fez com que muitos preferissem abandonar as crianças em igrejas ou orfanatos. Uma igreja de Jurasang, por exemplo, mantém uma “caixa para bebês” em que as mães podem deixar seus filhos. Desde a aprovação da lei, em 2012, o número de crianças que a igreja recebe mensalmente subiu de 2 para 20.
Molly Holt, dona de um orfanato construído por seus pais na Coreia do Sul em 1955, afirma que muitas mulheres não querem registrar seus bebês, pois isso as impediria de se casarem algum dia no futuro. Afinal, “nenhum homem quer se casar com uma mulher que teve um filho”. Por isso, o número de abandonos continua a crescer. Com as novas leis, as crianças enfrentam uma difícil dualidade: não podem ser adotadas internacionalmente, mas também são rejeitadas em seu próprio país.
De volta para casa
A adoção representa esperança para muitas crianças que crescem em orfanatos. No entanto, nem todos realizam esse sonho. É o caso de Kim Sunup, um órfão que nunca foi adotado. Ele conta que chegou ao seu orfanato aos 7 anos de idade e viveu lá por 11 anos. Dia após dia despedia-se de seus amigos que aos poucos iam sendo adotados e enviados ao exterior enquanto ele permanecia. Ao completar 18 anos, o diretor do orfanato comunicou a Kim que ele deveria deixar o local, pois já havia completado a maioridade.
Ainda surpreso e com os 100 dólares que havia ganhado do diretor, Kim viu-se totalmente desamparado, uma vez que o orfanato não havia fornecido qualquer tipo de preparação para que ele pudesse conseguir um emprego. O dinheiro que recebeu durou apenas alguns dias e ele lembra com pesar das dificuldades em não saber quando seria a sua próxima refeição. Atualmente, aos 57 anos, Kim vive feliz com sua esposa. Seu sonho era ser adotado por uma família norte-americana e estudar para se tornar bem-sucedido. No entanto, a oportunidade nunca chegou.
Por outro lado, aqueles que foram adotados e cresceram nos Estados Unidos ou outros países ocidentais narram uma experiência diferente daquela idealizada por Kim. Se na Coreia eles enfrentavam a rejeição dos pais, no exterior eles presenciaram diversas formas de discriminação. Cansados de sofrer com brincadeiras e comentários maldosos desde a infância, muitos deles retornam à Coreia do Sul em busca de sua identidade. Amanda Eunha Lovell, que retornou a Seoul após anos vivendo nos Estados Unidos, explica o sentimento de não pertencer a lugar nenhum: “A Coreia é o meu lar. Mas ainda não é um lugar em que eu me sinta completamente confortável”.
Os adotados sempre retornam em busca de informações sobre seu passado. Porém, a lei sul-coreana impede que eles obtenham o registro completo de seu nascimento sem o consentimento dos pais. Além disso, os arquivos de adoção do governo são muitas vezes falsificados, incompletos ou estão desaparecidos, impossibilitando o rastreamento dos pais biológicos.
De 2012 a 2015, menos de 15% dos adotados que solicitaram reencontrar seus pais obtiveram sucesso, de acordo com dados do governo sul-coreano. Para muitos, o teste de DNA representa uma solução para evitar toda a burocracia e falhas dos registros. O grande obstáculo nesse caso é encontrar compatibilidade, uma vez que não existe uma base de dados consolidada que esteja amplamente disponível para os pais sul-coreanos e as crianças que foram adotadas no exterior. A base de dados dos Estados Unidos e da Coreia do Sul, por exemplo, não são compatíveis e não permitem compartilhar informações.
O que a Coreia do Sul faz, portanto, é coletar amostras de DNA para sua base de dados nacional de pessoas desaparecidas. Tanto os pais biológicos como aqueles que foram adotados podem fornecer seu DNA. Apesar dessa prática ser muito comum, a quantidade ainda não é suficiente para reunir pais e filhos.
Outra limitação são os pais, que muitas vezes preferem não se pronunciar, pois temem o boicote da família e da comunidade. Para cada mil adotados que fornecem seu DNA aos bancos de dados, apenas cem pais realizam o teste.
Por outro lado, também existem exceções, como é caso de Song Chang-sook. Aos 89 anos de idade, ele viajou 200 milhas até Seul, junto com seu cuidador, para realizar um teste de DNA. Em busca de seus três filhos há mais de 40 anos, ele encontrou esperança após assistir um programa de TV que falava sobre o teste.
Quando sua esposa faleceu devido à febre tifoide em 1970, a sogra de Chang-sook decidiu que as crianças deveriam ser entregues para adoção em vez de serem criadas por um pai solteiro. Apesar de ter concordado na época, o arrependimento fez com que ele retornasse à agência de adoção cinco anos depois e muitas outras vezes depois. Até que um certo dia alguém informou que seus filhos estavam morando juntos na França. Porém, a agência estava proibida de divulgar informações pessoais dos três garotos. A lei de adoção de 2012 oferecia aos adotados o direito de acessar seu registro de nascimento, mas o mesmo benefício não se estendia aos pais.
Mesmo aqueles que tiveram um final feliz ao serem adotados por famílias internacionais buscam suas raízes. O documentário Twinster, disponível na Netflix, narra a história das gêmeas Samantha Futerman e Anaïs Bordier. Nascidas em Busan, em 1987, elas foram separadas quando Kim Eun Hwa foi adotada por um casal francês e batizada de Anaïs Bordier; e Chung Ra Hee foi adotada por um casal norte-americano e batizada de Samantha Futerman.
No início de 2013, elas descobrem a existência uma da outra quando os amigos de Anaïs se surpreendem ao ver um vídeo de Samantha no YouTube. O documentário mostra a vida das duas meninas e o encontro entre elas que acaba culminando em uma visita à Coreia do Sul para resgatarem seu passado.
Por Erika Nishida
Fontes: BBC, The Economist, The New York Times, MPAK
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