Ainda que a gente ame assistir a kdramas, precisamos ter em mente sempre que a cultura coreana é patriarcal e infelizmente ainda muito machista. Em 2016, a Coréia do Sul pontuou 0.649 no ranking de igualdade de gênero criado pela Human Development Reports e ficou em 116º lugar. As estatísticas variavam de 0 a 1, sendo 1 a mais alta, representando a completa igualdade de gênero. Na mesma tabela, o Brasil pontuou 0.687, alcançando o 79º lugar.
Não quer dizer que todos os coreanos sejam assim, mas os roteiristas precisam de um tempinho para esquentar e prolongar a trama, fazendo com que algumas cenas que são transmitidas com uma música romântica fofa na verdade devessem ser alvo de preocupação. Ao desejar um “oppa” em nossas vidas, não devemos nos espelhar nesses comportamentos.
Seguindo a cartilha do governo brasileiro publicada no Portal Brasil sobre violência contra a mulher, listamos os tipos de abuso previstos pela Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), que foi criada em 2006, como forma de proteção das mulheres contra qualquer tipo de violência. Essa lei fez com que os agressores tivessem prisão preventiva decretada ou pudessem ser presos em flagrante caso cometam qualquer ato ali previsto. Antes dela, os agressores podiam ser punidos com penas alternativas, como pagamento de cesta básica ou pequenas multas. A mudança no Código Penal brasileiro aconteceu inspirada na história da cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que ficou paraplégica após sofrer duas tentativas de homicídio pelo marido, que praticou abusos domésticos durante cerca de 23 anos.
Não pense que estamos falando apenas de agressão física, pois esse é um conceito simples de entender. Porém, existem tipos de violência que podem passar despercebidos por um olhar menos atento. Um dos mais comuns é também o mais popular nos kdramas: a violência emocional.
Imagine a situação: a protagonista é um pouco atrapalhada e não é tão bem sucedida no trabalho, apesar de se esforçar muito. Por causa disso, o seu par romântico, que geralmente é rico e com cargo de importância, a despreza, a chama de feia, incompetente e vive ofendendo tudo o que ela faz. Pareceu comum em algum kdrama que você já assistiu? “Personal Taste“, “My Name is Kim Sam Soon” e “Playful Kiss” são alguns exemplos nos quais a protagonista frequentemente tem a honra e a autoestima feridas.
Que tal agora aquele personagem lindo que chega no primeiro dia de não-relacionamento e diz “Você é minha”? Depois, ele fica nervoso quando a vê simplesmente conversando com um amigo. Ele pode ler mensagens do celular, impedir que a personagem faça o que tem vontade ou que saia de seu domínio. Esse tipo de controle e opressão também é uma forma de violência sorrateira.
Outro tipo de violência bem comum nos dramas, e felizmente muito criticado, é o famoso “wrist grab” ou “agarrar o pulso“. O que é isso? Sabe aquela cena em que a personagem quer ir embora e seu par romântico (ou não) a segura pelo pulso e a obriga ficar? Isso pode ser considerado abuso físico, tanto quanto sacudir, apertar os braços ou arremessar objetos. Nesta categoria, um beijo roubado ou prensar uma mulher contra a parede também é considerado um abuso se isso for feito contra sua vontade.
Por vezes, conseguimos notar um tipo de violência pouco comentado, que é a patrimonial. Entram nessa categoria: controlar, guardar ou tirar dinheiro de uma mulher contra sua vontade e reter documentos pessoais.
Em “Twenty Again“, por exemplo, a personagem tem a vida toda controlada pelo marido. Nessa história, o abuso não é tratado de forma romantizada e serve de exemplo sobre as consequências do machismo: Ha No Ra fica grávida bem jovem e o marido a leva para morar na Alemanha. Por ter vergonha de ter um filho da adolescência, ele a impede de conversar com as pessoas e a obriga a conviver em um mundinho restrito a sua própria casa. Ela não tem nenhum dinheiro e não pode nem voltar para a Coréia quando algo urgente acontece. Já adulta, ela é humilhada por ele por não ser uma mulher estudada e acredita ser sua culpa que o marido tenha arrumado uma amante. Ha No Ra depende financeiramente dele e, quando tenta ingressar em uma faculdade, ele não quer pagar. Quando finalmente consegue ir para a faculdade por conta própria, sofre todo tipo de preconceito: “será que essa ‘tiazona’ não vai cuidar da casa?”. Felizmente, nessa história, tudo isso é feito de forma crítica e a protagonista vai se descobrindo e libertando por conta própria, sem depender da felicidade em um relacionamento.
Tentando não entrar em spoilers, na trama percebemos um desabrochar completo da personagem, que ao entrar na faculdade, amplia seu mundo, resgata seus sonhos e entende que pode ser feliz por si mesma. Ha No Ra até tem um interesse amoroso, mas ela prioriza a descoberta do amor próprio e, com isso, um relacionamento mais saudável vira uma consequência. Como a personagem tem seus 40 anos, o drama é um ótimo exemplo de que nunca é tarde para começar a viver e virar o jogo.
No restante da cartilha são consideradas violência também: tirar a liberdade de crença religiosa, fazer a mulher achar que está ficando louca (o chamado “Gaslighting“, uma forma de contar os fatos de forma distorcida para mudar a percepção deles e colocar a culpa na vítima), expor a vida íntima do casal, forçar atos sexuais desconfortáveis, quebrar objetos dela, impedir prevenção a gravidez ou obrigar o aborto.
O problema de tudo isso ser retratado coberto por uma história romântica é que as personagens ficam perdidamente apaixonadas por um homem que não as trata bem, e que às vezes nem se esforça para mudar seu comportamento, deixando a mudança por conta da mulher. A ideia às vezes transmitida pode ser a de que se houver paciência e amor, todo homem, por pior que seja seu comportamento, poderá ser mudado, mesmo que, no processo, a mulher tenha que enfrentar problemas sérios de autoestima, aos poucos inserida em um relacionamento abusivo, no qual sofre violência sem notar.
Algumas medidas tomadas pela Coréia do Sul
Difícil é comentar sobre violência nos dramas sem falar sobre o caso da atriz Choi Jin Shil, que cometeu suicídio em 2007 após sofrer abusos repetidos do marido, o jogador de baseball Jo Sung Min, com quem teve dois filhos. A relação não pode ser feita de forma direta, mas ela, que foi considerada uma das melhores atrizes de seu tempo, denunciou publicamente os abusos, mas foi processada por sua agência por não “manter a decência” e perdeu. A Suprema Corte declarou que a atriz falhou em manter “a honra social e moral”. Seu caso inspirou uma lei em 2008 para que os filhos pudessem herdar o sobrenome da mãe.
Mas afinal, existe alguma instituição que combate isso? Na Coréia do Sul, há 12 anos existe, por exemplo, o KIGEPE (Instituto Coreano pela Educação e Promoção de Igualdade de Gênero, em tradução livre), que tenta ajudar na prevenção da violência doméstica e sexual. Seu trabalho é treinar pessoas em empresas, como a Samsung, para qualificar mulheres.
Também foi criado em 2001 um ministério para tratar a igualdade de gênero, o MOGEF, mas esse também passou por diversas polêmicas, primeiro por possuir a palavra “mulher” em seu nome, passando a significar algo como “Departamento de Mulheres”. Segundo uma notícia de 2011 do jornal Hankyoreh, mulheres criticaram o trabalho do Ministério da Igualdade de Gênero e Família pela demora em agir pelo direito das mulheres e também por ser omisso na controvérsia com o Japão sobre a estátua dedicada às mulheres de conforto. Em frente ao consulado japonês em Busan, existe um monumento de uma garota coreana simbolizando aquelas que foram forçadas a viver em bordéis militares japoneses durante a Segunda Guerra Mundial. O Ministério das Relações Exteriores da Coreia do Sul considerou a escultura inapropriada.
Na mídia, o MOGEF tem sido responsável por fiscalizar, censurar e banir conteúdos por eles considerados impróprios, entre eles MVs e músicas, obrigando grupos de KPOP a repensarem suas letras. Muitos desses banimentos são alvos de polêmica e entre os critérios já utilizados estão exposição de violência, menção de marcas famosas e sexualização de letras.
Para tentar alertar à população sobre as questões de gênero na mídia, a revista IZE em conjunto com a Anistia Internacional Coreana, fez um resumo perfeito das dez atitudes clichês de kdrama que são consideradas violência.
1. Puxar com força
2. Gritar e xingar
3. Levantar e carregar com força
4. Empurrar contra uma parede
5. Conduzir de forma violenta
6. Arremessar ou destruir objetos
7. Aparecer em sua casa inesperadamente
8. Anunciar a relação sem consentimento
9. Abandonar nas ruas
10. Beijar à força
A lista é tão precisa que chega a arrepiar. Quantas vezes não vemos uma personagem ser abandonada no meio da rodovia porque o protagonista masculino ficou irritado? Que tal os anúncios públicos de “ela é minha noiva/namorada” que acontecem como clímax de um episódio?
No entanto, personagens fortes têm aparecido, acompanhando o avanço da sociedade. Deixo novamente como recomendação o kdrama “Twenty Again” e também “Oh My Venus”, que já foi muito elogiado por fãs por sua protagonista forte e independente.
Da próxima vez que assistir a um kdrama, fique atento para os sinais de “close errado” da história e se você se identificar com qualquer um desses comportamentos dentro do seu relacionamento, busque ajuda na Delegacia da Mulher mais próxima.
Confira também a matéria sobre o papel das mulheres na sociedade coreana.
Por Juliana Butolo
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