[AVISO DE GATILHO] ESTA MATÉRIA CONTÉM DESCRIÇÃO DE CASOS DE BULLYING, ABUSO E SUICÍDIO. CASO POSSUA ALGUMA SENSIBILIDADE COM ESTES ASSUNTOS, A LEITURA NÃO É RECOMENDADA.
Nas últimas décadas, o bullying tem ganhado cada vez mais atenção do mundo como um problema em diversas áreas da sociedade, sobretudo na área da educação, onde o desenvolvimento de crianças e jovens é amplamente afetado no processo. Organizações de projeção mundial, como a UNICEF, chamam a atenção para as questões relacionadas ao bullying e engajam-se em extensivas campanhas no intuito de combater, prevenir e prestar apoio às vítimas da prática.
Este mês o assunto se tornou um tópico de destaque na Coreia do Sul e uma onda de denúncias de bullying e abuso surgiram de vários setores começaram a surgir: nos esportes, nas escolas, nos ambientes de trabalho e na área do entretenimento sul coreano. A onda de denúncias e exposição de casos deste mês teve origem após a divulgação do caso das atletas de voleibol e irmãs gêmeas Lee Jae-yong e Lee Da-young (24), que foram acusadas de praticar bullying contra colegas ainda no ensino médio. Segundo as quatro vítimas em postagem anônima, o número de pessoas que sofreram bullying das gêmeas é ainda maior e as acusações contra elas vão desde forçar colegas mais jovens a fazer atividades como lavar roupas até ameaças e agressões físicas. O caso das atletas gerou grande repercussão e uma petição com mais de 120 mil assinaturas foi entregue à Casa Azul exigindo uma investigação do caso. Em postagens em suas contas no Instagram, as atletas admitiram ter praticado bullying, pediram desculpas e afirmam estarem refletindo acerca da dor que causaram às vítimas que magoaram no passado. Como consequência do caso as atletas, que eram uma aposta do time nacional de voleibol sul coreano para as olimpíadas de Tóquio ainda este ano, foram cortadas do time e suspensas por tempo indeterminado pela Associação Coreana de Voleibol.
[LEIA MAIS] Bullying no esporte: conduta antidesportiva muito além das quadras
A hierarquia como raiz do bullying
O assunto bullying, assim como no Brasil, não é um assusto novo na Coreia do Sul: a onda de casos é um reflexo acerca da sociedade coreana e de comportamentos em várias esferas sociais. Em muitos casos, parte do bullying sofrido em escolas, por exemplo, pode ser atribuído ao estrito modelo hierárquico vigente na sociedade coreana atrelado ao ambiente competitivo a que os estudantes são expostos, bem como a vista grossa e relutância que muitos professores demonstram diante das agressões por medo da exposição ou de perderem seus empregos.
Mesmo com câmeras de segurança, modelo de vigilância já comum em escolas coreanas, os casos de bullying continuam a acontecer em espaços onde há pouco ou nenhum monitoramento. O problema foi apontado em 2012 pelo então membro do Comitê de Educação do Conselho Metropolitano de Seul, Kim Hyung-tae, em entrevista ao portal AsiaOne. Segundo ele, na época, as escolas coreanas contavam com 18179 câmeras operantes, mas cerca de 93% delas não possuíam qualidade imagem e de som boas o suficiente para identificar os agressores e que parte do monitoramento dos casos de bullying deveriam contar também com a participação de professores, o que não era feito.
Segundo um enquete feita em 2012 pelo Ministério da Educação, Ciência e Tecnologia sul-coreano, 1 em cada 10 estudantes, do primário a secundaristas, afirmam terem sofrido algum tipo de agressão pelo menos uma vez naquele mesmo ano e estes números seguem para fatos ainda mais alarmantes: com uma das taxas de suicídio mais alta do mundo, a Coreia do Sul coleciona casos de jovens que cometeram suicídio motivados pelo bullying nas escolas e em outros ambientes sociais.
Foi o caso do jovem Seung-min, que em 2012, aos 13 anos de idade, se suicidou e deixou uma carta de despedida apontando todo o bullying que sofria e os nomes dos envolvidos nas agressões. Segundo a carta, o menino de 13 anos foi agredido fisicamente, teve seu dinheiro roubado em diversas ocasiões, sofreu queimaduras de isqueiro e teve fios elétricos envolvidos em seu pescoço, como uma coleira. Todas as agressões teriam partido de seus colegas de escola. Lim Ji-young, mãe de Seung-min, é professora e afirma nunca ter tido conhecimento de que o filho sofria bullying no ambiente escolar e cobra uma maior ação das escolas: “A escola tentou acobertar [o caso], apenas 5 meses depois da morte do meu filho, uma outra menina da mesma série se suicidou por causa do bullying. Mas nada foi feito, então aconteceu novamente.“, afirmou à CNN.
O cenário preocupante de bullying não se restringe apenas ao ambientes escolares, nos ambientes de trabalho a situação do bullying chega a picos tão delicados quanto, já que nestes ambientes o assédio moral e sexual também são passíveis de ocorrer. Nos casos de bullying nos ambientes de trabalho coreanos as denúncias perpassam por uma dificuldade ainda maior já que em muitos casos as denúncias não são investigadas ou são praticadas pelos próprios superiores das pessoas agredidas. Um levantamento feito pela Comissão Nacional de Direitos Humanos da Coreia do Sul reporta que em 2019 cerca de 70% das pessoas empregadas no país afirmam terem sofrido bullying de superiores ou colegas em seus ambientes de trabalho, sendo que do número total 60% optaram por não tomar nenhuma medida de defesa ou denúncia, enquanto cerca de 12% continuaram a sofrer assédio todos os dias.
O bullying no ambiente virtual
Outro ambiente preocupante e talvez o mais difícil de quantificar e punir os culpados é o cyberbullying (bullying virtual). Atualmente a Coreia do Sul é um dos países com um dos sinais de internet mais rápidos no mundo, e os casos de perseguição, ataques e práticas de bullying no ambiente online crescem numa velocidade igualmente rápida. Comentários de ódio feitos a pessoas públicas e celebridades se tornaram cada vez mais comuns nas redes coreanas e agências de entretenimento, bem como as autoridades responsáveis lutam para identificar, punir e tomar todas as providências contra o bullying virtual. No caso das celebridades e cidadãos coreanos, os casos relacionados a ataques online vem ganhando cada vez mais atenção das autoridades e discussões acerca da saúde mental relacionada aos comentários feitos em ambientes online tem ganhado cada vez mais força nos últimos anos.
Na última semana, a onda de exposições de casos de bullying respingou também na área do entretenimento sul coreano: seguindo as denúncias acerca das atletas Lee Jae-young e Lee Da-young, uma série de denúncias envolvendo idols do kpop também começaram a surgir online. Idols e agências de entretenimento se dividiram entre tomar providências, negar acusações e afastar idols envolvidos nas acusações.
Por outro lado, uma série de campanhas e movimentações de autoridades visando o combate ao bullying e o encorajamento às denúncias tem sido vistas nos últimos anos. Em 2019 o governo sul coreano anunciou um anova lei para evitar o bullying em ambientes de trabalho, sendo que a nova lei visa punir os abusadores com penalidades que vão desde multas a prisão. O governo também ajudou as empresas a caracterizar e definir atitudes que de alguma forma configuram bullying como espalhar informações pessoais, forçar colegas a beber e fumar, bem como abuso verbal e humilhação pública. Nas escolas o endurecimento na punição de jovens que praticam bullying e a criação de centros de aconselhamento para vítimas de bullying tem se mostrado inciativas válidas para que as vítimas da violência consigam ser ouvidas e maiores providências sejam tomadas.
Após a morte da cantora Sulli em 2019, uma série de movimentações na justiça coreana e ativistas começaram a pressionar autoridades para que hajam punições mais severas e melhores formas de identificar os praticantes de cyberbullying e autores de comentários maliciosos e maldosos nos espaços online. Enquanto por um lado há a argumentação de que os culpados devem ser identificados através de um sistema de dados pessoais (modelo que foi proposto em 2007), outros argumentam que tal medida seria inconstitucional. Uma lei com o nome da artista foi proposto para uma maior punição aos praticantes de cyberbullying, mas não chegou a ser julgada pela Assembléia.
[LEIA MAIS] “Lei Goo Hara” e “Lei BTS” aprovadas; Conheça outras leis com nome de Idols
O bullying na mídia
Outra fonte que tem contribuído para as discussões e chamado atenção para a questão do bullying tem sido a arte, a exemplo dos k-dramas. Ao abordar o tema em seus roteiros, dramas como Solomon’s Perjury (2016), School 2013 (2012), True Beauty (2020) e Itaewon Class (2020) têm chamado atenção para o assunto, bem como seus danos e suas consequências tanto para as vítimas quanto para os agressores.
É possível perceber que o bullying ainda é uma questão muito forte e um problema de proporções nacionais na Coreia do Sul, mas novos passos estão sendo dados para dar atenção às origens do bullying e combatê-lo. Um exemplo foi a campanha anti-bullying da UNICEF em parceria com o grupo BTS, no ano de 2019, através da “Love Myself Campaign“.
Por fim, é possível ver que, mesmo diante de um problema persistente, ativistas e autoridades estão dispostos a fazer do bullying um problema que não é apenas visto, mas também combatido, para que no futuro o bullying seja apenas uma memória longínqua de um passado a não ser repetido.
Fontes: (1), (2), (3), (4), (5)
Imagens: Getty Images (Reprodução) e Netflix (Reprodução).
Não retirar sem os devidos créditos.