Nix, drag queen brasileira vivendo na Coreia há cerca de 6 anos, conta com exclusividade para a KoreaIN sobre suas experiências no país, como pessoa LGBTQIA+, trabalho na cena drag coreana e representatividade em uma entrevista especial para o Mês do Orgulho. Tiago Canário é um dos milhares de estudantes que viajam até a Coreia do Sul em busca de novos horizontes de estudo e carreira. Artista por trás da persona drag Nix, Tiago é Doutor em Cultura Visual na Coreia e atualmente compõe o cenário drag da Coreia do Sul como a primeira drag queen brasileira no país asiático.
Historicamente, a Coreia do Sul caminha a passos lentos no que diz respeito a visibilidade e aceitação da arte drag e outras artes performáticas queer em geral, mesmo que em sua história traga momentos em que a quebra de padrões esteve em evidência. Sobre isso, Nix, que também estudou aspectos artísticos e culturais da Coreia em seu doutorado, comenta parte dessa transformação ao longo dos anos: “Historicamente existiram experiências do tipo, embora eu não ache que sejam próximas daquilo que a gente chama de drag hoje em dia […]. Então dentro da história coreana, existiram muitas dessas performances em que um gênero performava o outro, mas não necessariamente com o ímpeto transgressor ou para quebrar paradigmas sexuais ou de gênero. Essa noção de drag que a gente tem hoje em dia começou no século 20 na Coreia, principalmente depois da Guerra da Coreia.” Nix ainda adiciona que localidades em Seul, como o bairro de Itaewon, sofreram influências vindas do exterior e principalmente dos Estados Unidos, dado o contexto pós Guerra da Coreia na época: “Itaewon foi um bairro que foi construído em torno das tropas dos Estados Unidos. Então eles trazem também, nos anos 50, bem essa ideia de drag que estava se desenvolvendo nos Estados Unidos, e aí algumas pessoas começam a performar mais nesse modelo que a gente conhece”, complementa.
Nix deixa claro que, por mais que os coreanos tenham ciência das artes performáticas, que de certa forma quebravam o conceito de gênero no passado, parte desses coreanos reconhece mais o viés histórico e de legado cultural, sem um filtro drag ou um olhar queer.
Ainda segundo Nix, esta é uma realidade que está mudando com as novas gerações, principalmente entre os jovens LGBTQIA+ coreanos, que não só estão abertos à arte drag, como também a uma quebra de gênero dentro do próprio cenário. “O apoio [à arte drag] vem aumentando, principalmente com as faixas etárias mais jovens, as gerações mais novas têm uma aceitação muito grande […]. Você vê como os grupos conseguem ter mais visibilidade, inclusive com a Parada LGBTQIA+ daqui, que a cada ano fica maior. Algumas propagandas e publicidades hoje em dia já incluem drag queens.”
Ainda como estudante estrangeiro na Coreia do Sul, Tiago Canário, se juntou a um dos vários clubes de estudos e interesses, das universidades coreanas. No caso dele, um clube com interesses voltados para a comunidade LGBTQIA+. O brasileiro iniciou sua trajetória como Nix, no ano de 2016, focando sua arte na composição visual do rosto e direcionando suas ações para trabalhos fotográficos (uma de suas áreas de atuação); não demorou muito para que o desejo de fazer performances, para além dos processos estáticos, atribuindo mais movimento, surgisse para ele: “Era uma performance de maquiagem para a fotografia. E eu queria explorar mais corpo, palco, etc… e aí eu comecei a sair para noite coreana, e foi assim essa transição”, afirmou Tiago a respeito do surgimento de Nix, sua persona drag.
Nix, segundo Tiago, é um nome escolhido através da mitologia, já que na Grécia Antiga Nix era o nome da deusa da noite. Outro fator importante para a escolha do nome foi a não-binariedade do termo, algo que complementa sua persona drag que não está necessariamente atrelada nem ao masculino nem ao feminino. Para ele, Nix é um nome de fácil pronúncia e assimilação em diferentes línguas como português, inglês e mesmo o coreano.
Quando perguntada sobre seu primeiro trabalho “formal” enquanto drag queen, Nix responde que tudo começou com o convite de um amigo: “Um amigo me chamou para fazer uma apresentação em um museu. Era uma performance de finalização do curso dele, que estava terminando o mestrado, e ele precisava que alguém não-coreano fizesse. Enfim, pelas questões que ele discutia na performance, tinha que ser um ‘corpo estranho’ para a cultura. Essa foi na verdade a primeira performance que fiz usando o corpo inteiro, numa galeria de uma faculdade daqui. Ele fez um treinamento comigo para explorar o corpo, explorar platéia e explorar os arredores.” Ainda sobre este primeiro trabalho, Nix comenta que foi uma situação atípica, já que no caso deste trabalho específico, a demanda e o treinamento que recebeu foram voltados para ignorar todo o público presente, o que exigia uma interação apenas com o local e os objetos, algo que ia numa direção contrária às performances drag convencionais. “Foi uma experiência bem tensa, porque era eu que me fechava muito em mim mesma, de bloquear tudo ao meu redor”, disse ela.
Sobre sua inserção no circuito drag da Coreia, Nix afirma que foi um processo que se deu aos poucos, quando ela começou a frequentar ativamente festas e eventos drag, até o surgimento da oportunidade de participar de um evento como DJ em drag. “Eu pedi pra participar de um [evento], com uma drag daqui que organizava uma festa mensalmente. Eu pedi na verdade pra participar como DJ […] eu tinha essa vontade de voltar a discotecar e eu pedi pra ela, para eu poder discotecar em drag, vestido de drag. Era uma maquiagem bem mais club kid, bem geométrica. Era uma outra coisa bem não-feminina, nem masculina, sai um pouco de gênero”, diz.
No que diz respeito sobre os primeiros contatos com o público, feedback e aceitação de sua persona drag, Nix continua: “Foi a primeira vez que eu interagi mais com o público. Porque em toda festa, quando você não está discotecando ou performando, você está circulando. E aí eu senti uma receptividade muito grande das pessoas, então elas se interessavam pelo que eu fazia mas [também] um distanciamento porque as pessoas não me viam como drag. A percepção que eles tinham era que drag tinha que ser feminina. Drag queen tinha que ser feminina e drag king tinha que ser masculino. Então como eu não estava dialogando com nenhum desses elementos, eu sentia que tinha uma receptividade muito grande pelo que fazia: ‘ah que legal… mas o que você faz?”, completa.
Diante da percepção de uma parte do público coreano e do seu diálogo com o cenário, a drag queen destaca que ainda existe uma confusão grande acerca do que exatamente são as drag queens e sua forma de arte: “Por aqui, existia uma percepção há alguns anos, e ainda tem pra muita gente com uma leitura de que drags são na verdade transsexuais, porque as pessoas não entendem muito quando veem. Vê uma figura masculina, uma figura feminina com traços masculinos… Então ficava um estranhamento. Tinha essa deturpação do que era drag e algumas pessoas leem como se fossem mulheres trans. Então, quando muitas drags vão dar entrevistas públicas ou dialogar em outros espaços, sempre tentam frisar muito que é uma expressão artística.”
Para Nix, por sua conexão com a comunidade LGBTQIA+, a arte e a cena drag acabam sofrendo críticas de conservadores em um movimento não muito diferente do que ocorre no Brasil. Movimento este, onde os críticos atrelam a cultura e a identidade queer como algo nocivo, que vem de fora e que quebraria padrões tradicionais familiares. Pontos de vista este, baseados em preconceitos e visões arcaicas de mundo: “No caso da Coreia, isso fica um pouco mais intenso do que no Brasil, não fisicamente, mas fica mais porque por um lado eles precisam aumentar a taxa de natalidade. O que não é um problema que a gente enfrenta agora [no Brasil], e por outro lado na Coreia eles têm muito essa noção de ser uma cultura homogênea. Então todo mundo que é parte da nação, tem essa noção muito forte do ‘nós’ […]. É algo muito fechado em si, quando você associa a dissidência ao estrangeiro. Isso é como um afronte à cultura ‘nossa’, que seria tida como original.”
Em todo o mundo, dada suas próprias questões regionais e culturais, os cenários drags se desenvolvem e se caracterizam de forma própria. Na Coreia não é diferente. Sobre os aspectos que tornam o cenário drag coreano único, Nix destaca: “É uma pressão da sociedade que a cena absorve de modo geral. A sociedade aqui é muito competitiva, e tem padrões de beleza muito intensos, a ‘barra’ é bem alta. Essa pressão acaba recaindo na cena drag também. Existe uma pressão muito forte para você ser muito polida, para se apresentar muito bem visualmente […] Na Coreia é muito difícil você fazer algo menos polido e ser bem aceito.”
Dentro dos clubes e boates LGBTQIA+ coreanos, a energia e a receptividade das pessoas é muito grande, segundo Nix. Uma vez que nesses espaços é possível encontrar tanto admiradores da arte drag, quanto pessoas que nunca tiveram contato com estas performances artísticas: “Geralmente as pessoas têm um fascínio muito grande. Como tem essa pressão pra perfeição visual estética, geralmente são figuras que chamam muita atenção. São muito bem arrumadas. O público tem uma receptividade muito grande e como são performances menores, uma pessoa faz no máximo três músicas por noite. As pessoas costumam colocar bastante energia nas performances, porque você consegue se dedicar mais.”
Por fim, Nix encerra pedindo que as pessoas procurem pelas drags coreanas em outros espaços disponíveis online: “[Recomendo] as pessoas procurarem mais online as drags coreanas, fora do que seriam os clipes de k-pop, ou fora do que seria a mídia principal que chega ao Brasil. Porque de fato, ali tem um afunilamento muito grande, das que seriam mais ideais dentro de um padrão […]. Quem tiver mais curiosidade: pelo YouTube e pelo Instagram mesmo você consegue ter uma noção maior da diversidade da cena, sem todas essas barreiras.”
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Por Josivan Mesquista e Barbara Contiero
Imagens: Cortesia de Tiago Canário
Não retirar sem os devidos créditos.