Apesar da literatura coreana ter dado seus primeiros passos em território brasileiro na virada das décadas de 1980 e 1990, com um leque plural de nomes e obras da Coreia aos leitores brasileiros – principalmente de poesia e contos –, os nomes contemporâneos com destaque maior foram apresentados no Brasil entre as décadas de 2000 e 2010. As publicações dos renomados Por favor, cuide da mamãe, de Kyung-sook Shin pela Intrínseca, e A Vegetariana, de Han Kang pela Devir, em 2012 e 2013, respectivamente, após termos acesso à celebrada trilogia de livros-imagem de Suzy Lee (Onda, Espelho e Sombra), lançados pela extinta Cosac Naify em 2008, 2009 e 2010, são marcantes nesse período. Não há dúvidas de que podemos dizer que naquela época já tínhamos contato com três dos nomes mais relevantes da literatura coreana hoje. No entanto, era só o começo.
O cenário editorial no Brasil em 2014, já ciente de alguns dos grandes nomes da literatura coreana, vê a chegada de dois nomes inéditos e relevantes no cenário global, quando falamos de potencial de internacionalização da ficção produzida na Coreia, a saber: Bae Suah, com o romance Sukiyaki de domingo, pela Estação Liberdade, e Hwang Sun-mi, com o bestseller Flora Hen: uma fábula de amor e esperança, pela Geração Editorial. Observando atentamente, pode-se afirmar que esses primeiros nomes da literatura coreana no Brasil são femininos e dedicados às ficções adulta e infantil de qualidade, já reconhecidas pelos leitores coreanos, mas ganhando os corações dos leitores no exterior. Por um lado, temos uma ficção feminina e feminista mais intimista e de denúncia, que mostra as vivências e mazelas do cotidiano na Coreia do Sul no século XXI, por um viés crítico e representativo das experiências de muitas mulheres coreanas (das mais diversas idades) hoje e, por outro lado, há um olhar para a infância que é particularmente humano e um exemplo do que os autores coreanos estão produzindo há 40 anos no mercado editorial local direcionado aos jovens leitores.
Já 2014 é um ano emblemático por representar um breve hiato de publicações coreanas no Brasil no exato momento de virada entre as ondas da Hallyu que explodiram em 2012 com “Gangnam Style”, de PSY, e que ganhou um novo impulso com a explosão de “RUN”, do BTS, em 2015. Internacionalmente, os admiradores da cultura coreana iam avançando seus interesses para além do K-Pop e dos K-Dramas e começaram a chegar de maneira significativa na K-Literature a partir de 2016 – mesmo ano em que Han Kang ganhou o prêmio Man Booker pela tradução de A Vegetariana para a língua inglesa, e que resultou em uma retradução e nova publicação da obra no Brasil em 2018, desta vez pela Editora Todavia.
Classificado como um título “difícil” de digerir por muitos leitores, até mesmo pelos coreanos, este clássico de Han Kang ganhou uma nova leva de admiradores em território brasileiro e ainda se tornou tema de pesquisas acadêmicas por aqui, como o trabalho de conclusão de curso de Jaqueline Mendes Santana, na UNESA, e a dissertação de mestrado de Carolina de Mello Guimarães, na USP, que foram defendidos em 2021 e compararam as duas traduções de A Vegetariana para o português brasileiro. Han Kang é, sem dúvida, um dos maiores nomes da literatura coreana contemporânea e este livro gera incômodos de forma sensível e alarmante, colocando a figura feminina em primeiro plano, e que ao mesmo tempo desafia possibilidades de interpretação e compreensão por sua chegada múltipla em menos de uma década às livrarias do Brasil.
A publicação de outros dois títulos contemporâneos de fôlego, Pepino de alumínio, romance de Kang Byoung Yoong pela Topbooks, e Chiclete, coletânea de poesias de Kim Ki-taek pela 7Letras, é representativa de 2018. À diferença do que estávamos acompanhando enquanto publicação feminina de literatura coreana no Brasil, estes dois livros são de autoria masculina lançam luz em temas como a vida de um coreano fora da Coreia e a vida demasiadamente humana na Coreia do século XXI e seus desafios pós-humanistas. Todo o peso da representação de vivências críticas tão coreanas, dentro ou fora da península, ganha ainda mais relevância em 2019, quando o filme “Parasita”, de Bong Joon-ho, ganha os cinemas internacionais e leva as estatuetas de “Melhor Filme”, “Melhor Diretor”, “Melhor Roteiro Original” e “Melhor Filme Internacional” no Oscar de 2020. A obra cinematográfica também foi um sucesso de público no Brasil, que logo se viu impelido a procurar por mais obras que narrassem o cotidiano da Coreia do Sul.
Na esteira do sucesso de mais uma onda da Hallyu no mundo, o Brasil vê o relançamento das obras de Suzy Lee pela Companhia das Letrinhas, a partir de 2017, e o lançamento de Azul, vermelho, transpareço…, livro ilustrado de Seonghye Hwang, pela Editora do Brasil em 2019. Ou seja, ao mesmo tempo em que vimos narrativas dirigidas ao público adulto, testemunhamos uma nova leva de obras para o jovem leitor, com maior investida no protagonismo da criança em histórias com poucas palavras e ilustrações carregadas de narratividade, que é uma característica comumente encontrada nos catálogos das editoras coreanas de literatura infantil e juvenil.
Também é em 2019 e 2020 que há uma média de 12 obras coreanas publicadas no Brasil anualmente, número que representa um aumento de 300% do que era publicado em 2009 e 2010.
Por exemplo, em 2019 ocorreu a publicação do primeiro romance de suspense de Jeong You-jeong em terras brasileiras: O bom filho, pela Editora Todavia; e em 2020, as publicações de A história de Hong Gildong, conto clássico de Heo Gyun, pela Estação Liberdade, e Grama, premiada novela gráfica de Keum Suk Gendry-Kim, pela Pipoca & Nanquim. Numa vertente, temos o thriller, um dos gêneros mais populares da ficção sul-coreana na Ásia e nas Américas, e em outra, tomamos conhecimento de histórias que marcaram o imaginário do povo coreano nos séculos XVII e XX. A obra de Heo Gyun expõe uma série de acontecimentos que são base para o pensamento neoconfucionista da Dinastia Joseon e a mescla de palavras e imagens enquadradas de Gendry-Kim revela uma das histórias mais tristes e sofridas pelas mulheres coreanas durante a ocupação japonesa no século passado.
Mas é em 2021 que o número de publicações coreanas dá um salto revelador no mercado editorial brasileiro, quanto registra mais de 30 títulos publicados num mesmo ano. Além dos mais diversos livros de webtoons coreanos de sucesso internacional chegando aos leitores brasileiros por editoras como a NewPOP (como o celebrado Solo Leveling), há os segundos volumes de autoras como Han Kang, com Atos Humanos, pela Editora Todavia; Bae Suah, com Noite e dia desconhecidos, pela DBA; e Keum Suk Gendry-Kim, com A Espera, pela Pipoca & Nanquim. Não podemos deixar de mencionar, é claro, a publicação do primeiro livro escrito e ilustrado por Suzy Lee: Rio, o cão preto, pela Companhia das Letrinhas, que também recebeu o Prêmio FNLIJ Monteiro Lobato de 2022 como a “Melhor Tradução Adaptação Criança”. De webtoons a livros ilustrados, de romances históricos a experimentais, encontramos aqui uma miríade de obras que dão forma a histórias distintas e complexas, de exploração das sensações humanas com uma particularidade cortante que é “a cara da escrita coreana”.
Chegamos então em 2022, quando vimos o maior número de títulos coreanos publicados no Brasil em um único ano: 34 obras no total. Esse levantamento quantitativo, realizado pelo podcast brasileiro Sarangbang, que se dedica à divulgação e discussão da literatura coreana no Brasil desde 2023 e é financiado pelo LTI Korea desde 2024, reflete bem a onda coreana da Hallyu focada em literatura que invadiu o Brasil após o sucesso mundial do drama “Squid Game” da Netflix em 2021. Desde a chegada da coletânea de contos Castella, primeira obra pós-humanista de Park Min-gyu, pela Martin Claret, até o segundo romance de suspense de Jeong You-jeong, Sete anos de escuridão, pela Editora Todavia, e o primeiro romance histórico de Juhea Kim, Como tigres na neve, pela Melhoramentos, uma variedade de gêneros e autores pisou em terras brasileiras pela primeira vez em resposta à demanda do público leitor brasileiro em busca de novas e outras histórias sobre a Coreia e vida na Coreia.
Não diferente é a chegada, no mesmo ano, dos primeiros livros ilustrados de Baek Heena, Balas Mágicas, pela Companhia das Letrinhas, e Eu sou cachorro, pela Editora Ameli, que se tornaram uma verdadeira febre entre os leitores crianças e mediadores de leitura nos mais populares clubes de leitura dedicados à literatura infantil no Brasil – como o Clube Quindim e o clube de assinaturas de livros infantis A Taba, que teve em seu acervo o livro-imagem Consegue ouvir meu coração?, da estreante Jo A-ra, também publicado pela editora Caixote em 2022, e que trata do tema do bullying na escola, que é extremamente comum no cenário estudantil sul-coreano nos últimos 20 anos.
Ainda sobre o emblemático ano de 2022, é válido destacar as publicações de Kim Jiyoung, nascida em 1982, romance feminista de Cho Nam-joo, pela Intrínseca, e Jun: a história real de um músico autista, novela gráfica extremamente delicada de Keum Suk Gendry-Kim, pela Pipoca & Nanquim, sobre uma figura que existe na Coreia do Sul e que inspirou a quadrinista e representar a vivência desafiadora desse talentoso artista. Os dois títulos podem ser disparadores de debates e reflexões sobre a vida na Coreia do Sul hoje, tanto sobre a luta das mulheres contra o patriarcalismo estrutural quanto sobre a inclusão e conscientização de neurodivergentes e seus familiares em uma sociedade que preza pela padronização e alto rendimento de seus cidadãos inseridos na cultura do “ppalli ppalli” — uma cultura que massacra e oprime a narradora de Sobre minha filha, romance queer de Kim Hye-jin, publicado pela Editora Fósforo no mesmo ano, e que retrata as vivências de mulheres de diferentes idades e de como a opressão de gênero contra as mulheres, em especial contra a comunidade LGBTQIAP+, pode transformar relações em travessias intransponíveis entre ilhas localizadas em um mesmo lar.
Contudo, a maré parece mudar um pouco em 2023, em termos de gêneros da K-Literature, e mais uma onda da Hallyu chega ao Brasil: a ficção de cura. Com quase 30 títulos coreanos lançados no mercado editorial ao longo do ano, destacam-se as obras Amêndoas, romance juvenil de Sohn Won-pyung, pela Editora Rocco; Bem-vindos à livraria Hyunam-dong, romance de cura de Hwang Bo-reum, pela Intrínseca; e A inconveniente loja de conveniência, romance de cura de Kim Ho-yeon, pela Bertrand Brasil. Esse gênero surge no Japão em 2012 e explode na Coreia do Sul entre 2018 e 2020 e, com exceção do primeiro título listado, as obras costumam concentrar suas narrativas na exposição, reflexão e breve resolução de problemas humanos cotidianos vividos por personagens que visitam e/ou frequentam um espaço especial em suas rotinas, o que é uma reflexo direto do que temos enquanto sociedade repleta de questões de saúde mental a serem resolvidas como resultado dos anos de isolamento social causado pela pandemia de COVID-19 entre 2020 e 2022. E entre os títulos que fogem desta onda nesse ano, encontramos a terceira obra de Han Kang publicada no Brasil, o autoficcional e super experimental O livro branco, pela Editora Todavia, que é um respiro de alívio a tanta cura!
Chegamos então em 2024, que já conta com mais de 20 títulos coreanos publicados, dentre eles os dois volumes do primeiro grande nome da ficção de cura da Coreia, A grande loja de sonhos, de Miye Lee, pela WMF Martins Fontes, e A incrível lavanderia dos corações, romance de cura de Yun Jung-eun, pela Intrínseca – que trouxe a autora Hwang Bo-reum, um dos fenômenos de seu catálogo, para participar das atividades da Bienal do Livro de São Paulo neste ano. Poderíamos arriscar dizer que este é o “ano da ficção de cura coreana no Brasil”, uma vez que já contamos com outros títulos publicados, como o segundo volume de A inconveniente loja de conveniência, também de Kim Ho-yeon, pela Bertrand Brasil, e O impulso, de Sohn Won-pyung, pela Editora Rocco. A necessidade de ler uma obra que circunda entre a autoajuda e a ficção diz muito sobre uma sociedade exausta — ou, nas palavras de Byung-chul Han, também sucesso de vendas no Brasil, uma “sociedade do cansaço” —, que anseia desacelerar o seu dia-a-dia sufocante e extenuante por um momento e sentir conforto em uma leitura que não pedirá muito do seu engajamento leitor.
E neste mesmíssimo ano ainda temos as chegadas imensuráveis de três gêneros que estão em uma crescente na Coreia do Sul — e que parecerem repetir esse sucesso e interesse em terras brasileiras: a literatura fantástica, representada pela coletânea de contos Coelho Maldito, de Bora Chung, pela Editora Alfaguara; a novela cyberpunk Contrapeso, obra de sci-fi de Djuna, pela Editora Suma; e o romance-novelas queer Regras do amor na cidade grande, do jovem talento Sang Young Park, pela Record. Há aqui uma variedade de títulos e gêneros para os mais diversos tipos de leitores — e todos podem acessar formas diversas de lidar com o caráter humano de personagens em situações-limite e de autoconhecimento —, todos muito bem embasados por uma crítica social ferrenha e feroz, ácida em alguma medida, mas reflexo da Coreia do Sul nessa segunda década de século XXI.
Para finalizar, é válido apontar os lançamentos de dois livros ilustrados com fortíssimo impacto nos leitores brasileiros: Verão, de Suzy Lee, pela Companhia das Letrinhas, que possui mais de 140 páginas inspiradas nas melodias de Vivaldi e representações das brincadeiras infantis em um verão coreano; e A lenda dos amigos, primeiro livro escrito e ilustrado por Lee Gee Eun, que chega pela Editora Pequena Zahar e tem o desafio de expor um conto folclórico coreano sobre a formação e manutenção de amizades e vínculos afetivos para além do tempo, em uma experimentação que mescla a linguagem dos quadrinhos e que emociona a todos. Todo esse cuidado com a infância da criança coreana reverbera nas infâncias das crianças brasileiras quando temos o recém-anunciado Prêmio FNLIJ Luís Jardim de 2024 como o “Melhor Livro de Imagem” para o belíssimo livro-imagem Piscina, de JiHyeon Lee, publicado em 2023 pela Companhia das Letrinhas.
Nomes, títulos, gêneros, temas. A literatura coreana cresceu e segue expandindo seus espaços no contexto do mercado editorial brasileiro com a força que só a Hallyu traz.
por Prof. Dr. Luis Girão (Universidade de São Paulo)
Imagens: Rocco, Todavia, Intrínseca
Não retirar sem os devidos créditos.