No dia 13 de setembro, Chen, um turista chinês de 50 anos, desembarcou na Ilha Jeju. Após quatro dias ele encontrou uma senhora coreana de 61 anos, parecida com sua ex-mullher, que o havia trocado por outro homem. Para Chen, a semelhança física entre elas foi motivo suficiente para esfaquear a coreana dentro de uma capela. Ela não resistiu aos ferimentos. O crime causou grande revolta na população, que agora exige que a política de visto aos chineses seja mais rigorosa.
A lei atual permite que os chineses permaneçam na ilha por no máximo 30 dias sem a necessidade de um visto. No entanto, após o ocorrido, mais de 11 mil sul-coreanos assinaram uma petição online exigindo que o governo retire esse direito de turistas chineses, segundo o Korea Times. Além das tensões políticas e econômicas entre China e Coreia do Sul, outro dado que contribuiu para essa rivalidade é o fato de que a maioria dos estrangeiros apreendidos na ilha Jeju são chineses. Diante disso, o governo teme que o sentimento de xenofobia seja disseminado pelo país.
Apesar da pressão popular, é improvável que a lei seja alterada, pois além das questões diplomáticas, a medida também impactaria a economia. Estima-se que 90% das vendas de lojas duty free sejam provenientes dos turistas chineses. Além disso, dados de julho de 2015 indicam que os chineses representam cerca de 40% dos estrangeiros que mantêm propriedades em Jeju.
Há quem acredite que esse preconceito seja justificável dado o incidente de Chen. Porém, a xenofobia está fortemente presente e exposta no território sul-coreano. Bares que aceitam apenas coreanos são muito comuns, por exemplo. Megan Stuckey relata que uma vez foi a um bar em que havia uma placa na entrada: “Apenas coreanos são permitidos porque nossos funcionários não conseguem se comunicar em Inglês”. A jovem, então, perguntou, em coreano, se poderia entrar caso falasse a língua do país e mesmo assim foi rejeitada.
Um caso parecido ocorreu em 2014 quando expatriados africanos foram barrados em um pub em Itaewon, região muito frequentada por jovens em Seoul. Do lado de fora do estabelecimento, lia-se uma placa: “Pedimos desculpas, mas devido ao vírus Ebola não estamos aceitando africanos no momento”.
A irlandesa Katie Mulrennan também foi alvo de xenofobia quando se inscreveu para uma vaga de professora em Seoul, onde já morava há dois anos. Apesar de ser a candidata perfeita, visto que já havia trabalhado como professora de inglês por mais de três anos em Barcelona, Oxford, Abu Dhabi e, enfim, Seoul, Katie não conseguiu sequer a chance de uma entrevista. A resposta que recebeu do recrutador foi: “Lamento informar, mas o meu cliente não contrata irlandeses devido ao problema de alcoolismo natural de seu povo”. Ironicamente, um estudo de 2008 a 2010, realizado pela Organização Mundial de Saúde, mostrou que o consumo médio de bebidas alcoólicas per capita entre sul-coreanos com mais de 15 anos é de 12,3 litros, enquanto que na Irlanda a média é 11,9 litros.
A Coreia do Sul é signatária da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 das Nações Unidas, que obriga o país a proteger e fornecer direitos básicos e serviços sociais aos refugiados. No entanto, as vítimas que buscam asilo ainda encontram resistência, seja pelas rigorosas políticas de controle do país ou pela xenofobia. Em 2014, a Coreia do Sul recebeu apenas 94 refugiados dentre os 2.900 que buscaram o apoio do país.
RAÍZES HISTÓRICAS
A história da Coreia do Sul foi marcada por frequentes invasões dos países vizinhos. Após serem subjugados repetidamente, os sul-coreanos desenvolveram um forte sentimento de nacionalismo, considerando-se “sangue puro”, mantendo costumes patriarcais tradicionais, segundo Seol Dong-hoon, sociólogo da Universidade Nacional Chonbuk.
Séculos atrás, quando as mulheres coreanas eram levadas para a China como prêmios de guerra e forçadas à escravidão sexual e depois conseguiam voltar para casa, eram discriminadas por suas comunidades, que as consideravam “contaminadas”. O mesmo acontecera com as escravas sexuais do Exército Imperial Japonês. Mais tarde, as mulheres que vendiam sexo aos americanos nos anos seguintes à Guerra da Coreia (1950-1953) eram desprezadas ainda mais. Seus filhos eram rejeitados e chamados de “twigi”, um termo utilizado para referir-se aos os híbridos de animais, afirmou Bae Gee-Cheol, 53, cuja mãe foi expulsa de sua família depois de ser estuprada por um soldado americano e dar à luz.
Para muitos coreanos, o primeiro contato com não-asiáticos ocorreu durante a Guerra da Coréia, quando as tropas americanas lutaram ao lado da Coreia do Sul. O sociólogo Seol acredita que essa experiência tem complicado as percepções raciais dos sul-coreanos. Hoje, a mistura de inveja e ódio do Ocidente, especialmente dos americanos, é evidente na vida diária.
Em 2007, a Comissão das Nações Unidas para Eliminação da Discriminação Racial recomendou que a Coreia do Sul adotasse uma lei anti-discriminação, lamentando a utilização generalizada de termos como “sangue puro” e “sangue misturado”. A comissão ainda alertou sobre a necessidade da educação pública superar a noção de que a Coreia do Sul é “etnicamente homogênea”, pois tal afirmação “já não corresponde à situação real.”
No entanto, um fórum para discutir a proposta de legislação contra a discriminação racial se transformou em um fervoroso debate online entre diversos críticos. Eles afirmavam que tal lei só iria incentivar ainda mais a entrada de trabalhadores migrantes na Coreia do Sul, empurrando os trabalhadores nativos para fora do mercado de trabalho e criando favelas infestadas de crimes. Ainda segundo eles, é muito difícil definir o que é racialmente ou culturalmente ofensivo.
PROBLEMA DE ORDEM JURÍDICA
Infelizmente, na Coreia do Sul não é tão incomum encontrar estabelecimentos que vetam a entrada de estrangeiros. Em junho de 2015, o jornal The Observer publicou uma matéria sobre uma sauna no distrito turístico de Busan que recusava a entrada de pessoas que “pareciam estrangeiras”, a fim de tranquilizar seus clientes coreanos. “Eles causam muitos problemas”, um funcionário disse ao jornal. No entanto, apesar da revolta popular em relação a essas atitudes discriminatórias, tais políticas não são ilegais.
Embora a existência de locais que só aceitam coreanos possa parecer inofensiva para alguns, afinal, existem milhares de outros lugares que os estrangeiros podem visitar – a questão aponta para um problema maior. A Coreia do Sul, ao contrário dos Estados Unidos e da maioria dos outros países desenvolvidos, não tem leis contra a discriminação em estabelecimentos, mesmo com o crescimento de uma população mais multicultural. Até mesmo as Nações Unidas estão cientes do problema. Em 2014, o especialista em Direitos Humanos da ONU Mutuma Ruteere solicitou que a Coreia promulgasse leis abrangentes para lidar com “o racismo, a xenofobia e a discriminação”, após sua primeira visita oficial ao país. Ele lembra de ter visto mulheres naturalizadas coreanas sendo proibidas de entrar em casas de banho públicas, motoristas de táxi que denunciaram passageiros de aparência estrangeira para a polícia e assistentes de lojas com atitudes depreciativas em relação a estrangeiros.
Segundo Ruteere, é dever do governo evitar a proliferação de movimentos racistas e xenofóbicos. Além de ações educativas voltadas a essas questões, o especialista da ONU alegou que a mídia também deve agir de maneira extremamente sensível e responsável para não perpetuar estereótipos e que, quando algum veículo cometer algum ato que contribua para a disseminação da xenofobia, ele seja punido adequadamente. Quando questionado sobre as políticas voltadas ao multiculturalismo, muitas vezes vistas com maus olhos por aqueles que preferem chamar de “assimilação cultural”, Ruteere argumenta: “meu entendimento de multiculturalismo é reforçar o conhecimento intercultural. Não é uma via de mão única, mas dupla. Os coreanos têm muito a aprender com seus imigrantes e a cultura dos imigrantes. O verdadeiro multiculturalismo significa aprendizado de ambos os lados”.
No entanto, seria injusto dizer que não houve nenhum esforço do governo em mudar a situação enquanto o país abre suas fronteiras aos imigrantes por razões econômicas e sociais. Em 2008, a Lei de Apoio Às Famílias Multiculturais foi decretada a fim de fornecer serviços sociais aos imigrantes e seus filhos. Também houveram esforços para criar leis anti-discriminatórias em 2007, 2010 e 2012, embora muitas dessas tentativas tenham falhado devido à forte oposição de grupos cristãos de direita.
Vertentes mais otimistas enxergam o problema de outra maneira. Além de a Coreia do Sul ainda ser uma democracia relativamente jovem, os problemas de imigração são complexos, devido à variedade de categorias de imigrantes. Para piorar, o país ainda recebe um grande fluxo de desertores da Coreia do Norte, que também enfrentam discriminação ao chegarem. Considerando todas essas questões e comparando ao seu vizinho mais velho e igualmente homogêneo, o Japão, que também não possui leis anti-discriminação suficientes, a Coreia do Sul pode até estar em um ritmo acelerado. Afinal de contas, os Estados Unidos demoraram quase 200 anos após a declaração da independência para decretar a Lei dos Direitos Civis de 1964.
Por Erika Nishida
Fontes: Sina, The Guardian, USA Today, The New York Times, Korea Herald e City Lab
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