Era fim de janeiro quando a promotora pública Seo Ji-hyun chocou a Coreia do Sul ao denunciar em rede nacional que havia sido assediada pelo oficial do Ministério da Justiça Ahn Tae-geun. O que se seguiu foi uma onda, até então inimaginável dentro da sociedade majoritariamente patriarcal, de denúncias e depoimentos de diversas vítimas que, após anos de medo e culpa, haviam encontrado em Ji-hyun coragem para se pronunciar.
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Desde então a ministra de Gênero e Igualdade, Chung Hyun-back, não tem poupado esforços para a elaboração e aplicação de projetos que visam à educação sexual e incentivam o combate ao assédio e abuso sexual dentro de instituições públicas e privadas. O Ministério tem ainda trabalhado em conjunto ao time de investigação especial montado pelo Escritório de Promotoria de Seul e liderado pela promotora Cho Hee-jin, para investigar e punir os crimes até agora denunciados.
Outra importante ação foi tomada pelo Exército sul-coreano, que anunciou a criação de um esquadrão para criação de novas regras de punição para crimes sexuais dentro da instituição. Em um relatório apresentado a Assembleia Nacional, a Corte Militar apresentou o sistema “uma pancada e você está fora”, um conjunto de punições mais severas que as atuais, incluindo expulsão e julgamento em corte popular.
E no entretenimento?
Ainda no quesito judicial, baseando-se nas chocantes revelações sobre os setores de arte e cultura trazidos pelo “Me Too”, o governo anunciou planos para a criação de um centro para que artistas possam, de forma segura, denunciar abusos e receber apoio legal; uma nova legislação que visa à proteção e apoio a artistas que sofram crimes sexuais também está a ser desenvolvida.
Se depender ainda da pressão de ativistas e legisladores, outras duas importantes e polêmicas leis devem sofrer modificações ainda esse ano. A lei da difamação nos moldes atuais não reconhece a verdade como uma defesa contra acusações, o que significa que uma pessoa pode ser obrigada a responder criminalmente por comentários feitos, mesmo que estes sejam justos e verdadeiros; apoiadores da mudança de texto da lei argumentam que esta é um dos fatores principais de inibição de denúncias de violência sexual. Outra lei a ser revisada é a que pune violência entre namorados e perseguição (stalking). Atualmente essas são consideradas contravenções simples e a punição limita-se a multas, enquanto o novo texto estipularia tempo de prisão e medidas protetivas para as vítimas.
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Outra importante, e tocante, ação pedida por legisladores é a chamada por uma nova investigação do escândalo sexual que levou ao suicídio da atriz Jang Ja-yeon. A representante do Partido Democrático, Choo Mi-ae, disse sobre o caso:
“É preciso revelar a verdade e conduzir uma investigação apropriada, para que ninguém, nunca mais, seja pressionado a oferecer favores sexuais ou aguentar assédio por nenhuma razão”.
Uma demonstração de que a justiça tem avançado nesse tópico é uma decisão recente e inédita: o Escritório de Serviços Hídricos do Governo Metropolitano de Seul foi considerado culpado e ordenado a compensar a família de uma ex-funcionária pública. A mulher haveria cometido suicídio após ser sexualmente abusada por três de seus superiores e posteriormente sofrer bullying por denunciá-los oficialmente.
A Polícia sul-coreana também faz parte das instituições que tem trabalhado pelo avanço da luta contra crimes sexuais. Este mês o Centro de Direitos Humanos do Distrito Policial de Yongsan lançou uma unidade especial para combater crimes sexuais online. O time combaterá o chamado “revenge porn” (quando um companheiro vaza fotos íntimas como vingança), pornografia e exploração infantil, entre outros; a unidade também será responsável por oferecer aconselhamento a vítimas, apagar vídeo e fotos vazadas, bloquear acesso a conteúdo sexual ilegal e investigar casos online específicos.
No setor social, uma moda surpreendetemente boa tem tomado conta dos pais de crianças e adolescentes em idade escolar: a busca por tutores particulares de educação sexual. Os cursos oferecidos por diversas academias lidam com cenários escolares e se baseiam no relacionamento entre colegas de classe e entre alunos e professores e a as aulas se baseiam em vídeos e histórias em quadrinho. Os pais alegam que a recente onda do #MeToo os levou a perceber que os jovens precisam aprender e entender sobre sexo, consentimento e respeito pela liberdade sexual.
Apoio social vindo de ídolos do Kpop
No mundo do K-pop, duas interessantes notícias causaram a comoção de fãs coreanos e internacionais. A primeira diz respeito ao grupo A.C.E (que recentemente esteve no Brasil); após comentários de alguns membros do grupo serem considerados misóginos, a agência do grupo apresentou um pedido formal de desculpas e anunciou que os membros, assim como outros artistas sob seu agenciamento, receberiam aulas sobre feminismo e outras áreas de humanas e que o processo de aprendizado poderia ser acompanhado pelos fãs em plataformas sociais.
A segunda notícia veio durante uma coletiva de imprensa para anunciar o novo mini-albúm do grupo GOT7, Eyes on You. Os membros JB e Jinyoung, conhecidos entre os fãs por seu amor aos livros e interesse em temas sociais, demonstraram seu apoio e respeito às vítimas de violência sexual, Jinyoung disse: “Eu quero aplaudir todos que corajosamente tem se manifestado. Eu acredito que há muita dor escondida por aí, não apenas no nosso ramo. Eu espero que essas vítimas consigam apazigar sua dor e levanter suas cabeças com confiança. (…) Eu espero que o #MeToo cause uma onda de transformação em nossa sociedade”.
JB expressou sua vontade de amadurecer e se transformar em um homem bom e um exemplo para seus fãs e colegas do mundo do entretenimento. Os demais integrantes ainda ressaltaram que desde muito jovens os artistas de sua agência, a JYP Entertainment, recebem educação sexual e têm em seu CEO, Park Jin Young e demais funcionários o apoio emocional e mental necessário para que se sintam seguros e protegidos.
Todos esses avanços são coisas que, há alguns anos, pareciam impossíveis dentro da sociedade coreana e vê-las nos mostra que a mudança é sim possível, mas há ainda muito a se fazer no combate à violência sexual, não somente na Coreia do Sul, mas no mundo todo. Para que a realidade mude, é preciso primeiro que a mentalidade da sociedade se transforme e, para isso, é preciso que movimentos como o #MeToo sejam ouvidos, apoiados e que lições sejam aprendidas.
Por Jeiciane Torres
Fonte: New York Times, The New Yorker, Time, BBC, TheGuardian, Chosun, Yonghap, Huffington Post, Allkpop
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