Quem acompanha o mundo do entretenimento coreano há algum tempo sabe que muito do que é produzido atualmente no mercado sul coreano tem inspirações e influências da cultura negra: o mercado da moda, da beleza e principalmente da música são alguns exemplos que podem ser citados. Mas como exatamente acontece essa influência nos dias de hoje? Como as relações raciais tem se desenvolvido na Coreia? E sob qual lente a questão racial é tratada atualmente no país asiático do ponto de vista cultural?
Um possível início
Antes que se entenda o estado atual da cultura negra dentro da Coreia, primeiro é necessário entender os acontecimentos que possiblitaram a mescla de culturas e a produção de entretenimento sul coreano como é feito atualmente.
Muito do que se vê nos dias de hoje na Coreia remete a uma abertura para o mundo que aconteceu ainda nos anos 90. Foi durante a década de 1990 que a Coreia do Sul começou a abrir um pouco mais as suas fronteiras para a Globalização, sendo que nessa década o país entrava, junto da Coreia do Norte, para a Organização das Nações Unidas (ONU). Assim como o Brasil, o final dos anos 80 para a Coreia foi um período de grandes mudanças políticas. Aconteceu publicação da constituição e da lei de eleições presidenciais, transformações que possibilitaram à Coreia do Sul seu primeiro presidente eleito democraticamente após o período ditatorial, através de votação de direta.
Além das transformações políticas, a Coreia também passava por transformações econômicas e culturais. Ainda precisando se recompor diante das mudanças da década anterior, uma Coreia em crescimento necessitava de atuações fortes em todas as suas frentes. A produção cultural na Coreia do Sul também serviria como uma dessas frentes para, mais tarde naquela década, enfrentar a crise econômica que atingiu a Ásia, no final dos anos 90. E é dentro deste cenário que a indústria cultural ganha uma enorme participação: é no início dos anos 90 que surge um dos maiores fenômenos econômicos e culturais advindos da Coreia da Sul, nascia ali o K-POP.
A abertura da Coreia para o mundo e a sua necessidade com relação a produções culturais possibilitou que o K-pop nascesse como um produto que buscava inspirações não apenas dentro, como também fora da Coreia. Uma das grandes fontes de inspiração, a princípio, viria da música popular estadunidense, sobretudo do hip hop e sua cultura: os figurinos, as atitudes e as batidas do hip hop embalaram os trabalhos de muitos artistas do K-POP, incluindo os pioneiros Seo Taiji and Boys.
Longe dos holofotes do entretenimento, os problemas acerca das relações raciais mostravam suas faces na Coreia: a abertura ao mundo demonstrou que persistia no país uma resistência e preconceito em relação aos estrangeiros por uma parte considerável da sociedade coreana.
As questões raciais na Coreia
Os anos 2000 marcaram a globalização como tendência no mundo inteiro: o advento da internet agora possibilitava um intercâmbio cada vez maior de informações e influências, estreitando ainda mais as relações humanas, o que incluía também a Coreia do Sul. Em meio a uma circulação cada vez maior de cidadãos do mundo inteiro, valores extremamente conservadores e preconceitos bateram de frente com uma diversidade cada vez mais presente em solo coreano.
Enquanto por um lado a produção cultural e o entretenimento seguiam tendo influências externas, do ponto de vista humanitário as portas fechadas para estrangeiros e abertas para o racismo se mostraram comuns. Relatos de estrangeiros, sobretudo de pessoas negras, demonstram que muito da questão do racismo ainda precisa ser superado na Coreia dos dias atuais.
As discussões com relação ao preconceito e ao racismo na Coreia tem ganhado destaque na mídia coreana, já que as atenções do mundo andam cada vez mais voltadas para a Coreia. Em 2017, o programa “Hello Counselor”, da rede KBS, trouxe o relato de Uzoh Paul, um homem Nigeriano vivendo na Coreia. Ele falou abertamente sobre os preconceitos que sofria, desde estabeleciomentos onde “estrangeiros/pessoas negras não são permitidas” ao completo isolamento quando usava o transporte público, já que muitas vezes, coreanos se recusavam a sentar perto dele: “uma vez fui alugar um quarto [e a dona disse] ‘não alugo quarto para africanos, vocês são pessoas sujas’. Eu não sou sujo, por favor, me tratem melhor”.
Por favor, me tratem melhor
Uzoh Paul
Em 2017 a produtora de conteúdos “Asian Boss” fez uma série de entrevistas com jovens coreanos sobre o que eles pensavam sobre pessoas negras e sua inserção da comunidade coreana.
Assim como diversos países asiáticos, a Coreia do Sul ainda possui uma sociedade homogênea, onde o grupo étnico de coreanos representa 96% da população total. Diversos coreanos durante a entrevista assumem presumir que os negros estejam ligados a atividades que exijam esforço físico, como os esportes, ou ligados ao entretenimento e criatividade.
Alguns jovens dizem que as gerações mais antigas possuem uma percepção negativa sobre as pessoas negras, mas que os jovens estão quebrando esse tabu. Eles assimilam essa negatividade à forma como a mídia (sobretudo filmes Estadunidenses) retrata as pessoas negras, sempre relacionadas a pobreza, situações periogosas ou ao crime.
Entretanto, diversos entrevistados relatam já terem visto situações de racismo contra pessoas negras, seja em notíciarios ou no dia a dia.
Confira abaixo a entrevista na íntegra:
Por outro lado, a globalização beneficiava a Coreia economica e culturalmente. A internet foi a responsável por uma dispersão e uma demanda mundial cada vez maior dos produtos de entretenimento advindos da Coreia do Sul. A chamada Hallyu (onda coreana) ganhava cada vez mais força e agora o mercado da moda, da música e até da dramaturgia coreana ganhavam mais fãs e adeptos mundiais, liderados pelo fenômeno ascendente do K-pop e a cultura idol.
Globalização, K-pop e Cultura Negra
A última década para as produções culturais sul coreanas só pode ser definida por uma palavra: sucesso. Nesta década vimos o K-pop crescer como nunca, dramas e produtoras coreanas fechando parceria mundiais, personalidades coreanas estampando campanhas de marcas globalmente famosas. Vimos também grupos coreanos como o BTS fazendo história e dominando paradas estadunidenses e europeias, bem como os primeiros Oscars do cinema sul coreano (com o aclamado “Parasita” do diretor Bong Jong Ho). Agora o K-pop não apenas sofre influência, como também passava a influenciar.
Por outro lado, o cenário cultural underground da Coreia também se desenvolvia por detrás das cortinas. Foi nesse cenário também que se viu um crescimento do gosto coreano por gêneros como o jazz, o blues e sobretudo o R&B. Enquanto por um lado existia a emergência de gêneros de raízes negras em várias áreas da cultura coreana, por outro lado o país ainda lida com os conflitos relacionados à raça.
A prória sociedade coreana conhece as marcas do racismo já que, a medida que o entretenimento sul coreano ganha o mundo, muito das respostas vem em forma de racismo e xenofobia contra asiáticos e coreanos em si. Ainda é possível apontar o quanto o mercado mundial parece despreparado ou hesitante no que diz respeito à representatividade asiática sem estereótipos racistas ou xenófobos.
Agora, o meio cultural se divide entre se valer daquilo que foi absorvido da cultura e as cobranças à respeito do seu posicionamento e providências acerca das questões raciais.
Apropriação?
À medida que as discussões sobre racismo ganham mais voz pelo mundo, também é cobrado por parte do entretenimento sul coreano acerca do seu uso de influências negras no mercado cultural. Muitos acusam o país de promover apropriação cultural, já que a cultura negra pode ser facilmente vista no mercado sul coreano. Porém, a discussão racial no país não demonstra a mesma força.
Os anos 2010s foram marcados por um novo boom do hip hop na Coreia com reality shows de sucesso como os hits da MNET “Show Me The Money” e “Unpretty Rapstar”. Também foi possível observar um número maior no surgimento de gravadoras dedicadas apenas a gêneros como hip hop e R&B, como é o caso da AOMG, fundada pelo ex-2PM e agora solista Jay Park.
Pessoas da comunidade negra na Coreia afirmam que os coreanos amam a cultura negra, mas muitos não estão dispostos a lidar com as origens dessas influências. Eles afastam as pessoas negras dos holofotes e dos “louros” de algo pela qual elas mesmas são responsáveis. Em 2019 o canal The Black Experience Japan, que coleta depoimentos e histórias de pessoas negras vivendo ao redor do mundo, mostrou o relato de Taylor, uma professora e modelo texana que passou a viver na Coreia do Sul. Segundo Taylor, os coreanos amam a cultura negra, mas infelizmente tentam retirar a “negritude” dela: “Os coreanos realmente amam a cultura negra, há o hip hop, mesmo o kpop pega emprestado do hip hop… sabendo que todas essas coisas vieram pra Coreia através de faces negras, é um pouco decepcionante que a Coreia tente tirar as raízes negras disso, mesmo amando consumir“.
À medida que produtos de origem negra ganham mais espaço no mercado coreano, muito se discute a respeito do crédito e do espaço que realmente é concedido para as pessoas negras na Coreia.
Representatividade negra no entretenimento coreano
Mesmo que ainda haja um caminho grande a ser trilhado no quesito da representatividade negra no meio cultural coreano, alguns exemplos de pessoas negras que ganharam visibilidade se tornaram mais frequentes nos últimos anos. Imigrantes ou cidadãos coreanos que nasceram de casamentos entre coreanos e estrangeiros, cada um trilha seu caminho dentro do entretenimento.
A rapper e cantora Yoon-mirae ganhou grande notoriedade no cenário de hip hop da Coreia. Filha uma mãe sul coreana e um pai afroamericano, Yoon-mirae, também conhecida como Tasha (apelido para Natasha, seu nome nos EUA) estabeleceu uma carreira como parte do grupo Uptown, parte do duo Tashannie, como solista e atualmente como parte do trio MFBTY (formado com o marido coreano e também rapper Tiger JK e o rapper Bizzy). Atualmente, Yoon-mirae é uma das mais respeitadas artistas femininas no hip hop coreano e é vista como referência no gênero.
Outro nome negro que entrou brevemente no mercado do K-pop, a estadunidense Alex Reid fez história ao ser a primeira mulher negra e estrangeira a fazer parte de um grupo feminino de Kpop. Em 2015, Alex se juntou ao grupo Rania para fazer parte de um reboot, a partir daquele momento se chamariam BP Rania (BP refere-se à expressão “black pearl” ou pérola negra, que no caso seria Alex).
Apesar da boa recepção por parte dos fãs internacionais no anúncio, muitas reclamações seguiram a respeito da visibilidade e da participação de Alex no grupo. Pouco tempo depois de entrar no grupo, Alex deixou o projeto pois, segundo ela, a situação se tornava um pouco insustentável e ela já não estava satisfeita. A cantora comentou sobre o assunto em uma entrevista à youtuber e rapper Grace. Na entrevista elas também comentaram sobre encontros românticos entre idols e as dificuldades que teve com a barreira linguística.
No mercado da moda, o modelo Han Hyun-min ganha cada vez mais espaço, não apenas nas passarelas e catálogos de lançamentos da temporada, mas também na TV e no mundo do entretenimento coreano, como ator e personalidade.
Por ser filho de um pai nigeriano e mãe coreana, Hyun-min relatou no programa Radio Star, da MBC, as dificuldades que teve na infância e como atualmente lida com isso em seu meio de trabalho: “Eu me perguntava porque era diferente e coisas desse tipo“.
Outra personalidade que tem espaço cativo no dia a dia dos coreanos é ganense Sam Okyere. Ele se mudou para a Coreia do Sul em 2009, afim de se graduar em Ciências da Computação. Entretanto, diversas propostas para aparecer em programas de TV começaram a surgir.
Sam já participou de pelo menos 16 programas sul coreanos diferentes, desde 2013. Em 2015 foi premiado durante o 8th Korea Drama Awards como “Estrela Global” e foi incluído na lista Forbes 30 Under 30 Asia em 2017.
#BlackLivesMatter e o cenário atual
Com os protestos pela morte de George Floyd pelas mãos do policial branco Derek Chauvin, uma mudança de paradigma pode ser visualizada na Coreia: muitos artistas do entretenimento coreano se mostraram solidários à causa negra e aderiram às hashtags #BlackLivesMatter e #BlackOutTuesday. Esta segunda criada especialmente para a última terça feira (2), como protesto silencioso através da redes sociais, onde as pessoas usavam fotos pretas junto da hashtag diferenciada para que as informações passadas através da tag #BlackLivesMatter não fossem encobertas pelas imagens da #BlackOutTuesday.
VEJA TAMBÉM:
Artistas de grupos como NCT, Girls Generation, Mamamoo, EXID, Kard, Epik High e muitos outros se mostraram a favor do movimento. O rapper Dumbfoundead inclusive lembou aos artitas asiáticos e internacionais que de alguma forma usam gêneros musicais de origem negra como base de seus trabalhos, então pediu poscionamento: “Todo artista asiático que se beneficiou e ganha a vida através de cultura negra deveria estar falando agora, eu vejo vocês“, tweetou o rapper.
Em 2017 um mini documentário promovido pela Red Bull Music, mostrava um pouco mais sobre o crescimento do R&B na Coreia e como o país mostra ter um cenário cada vez mais forte. Nele, é possível ver o cantor Gallant, o rapper Tablo (Epik High) e a solista Lee Hi, comentando como o gênero vem ganhando mais espaço nos corações coreanos. Gallant se mostra otimista com relação ao R&B coreano e demonstra satisfação ao perceber que muitos dos gêneros negros marcados pela discriminação em décadas anteriores agora estejam encontrando um refúgio valioso na Coreia. Ao final, é mostrado um dueto entre Gallant e Lee Hi em um de seus shows.
A questão racial e da cultura negra na Coreia do Sul ainda caminha a passos lentos, mas já demonstra mudanças recentes, sendo que cada vez mais autoridades se voltam para as questões de imigrações e para uma maior exatidão no que diz respeito a punições para discriminação racial e xenofobia.
Talvez seja, no fim das contas, através da arte que aconteça a quebra de paradigma ao redor da negritude. E então a Coreia possa, enfim, abraçar além da cultura, também as pessoas negras como um todo.
Jô Mesquita
Fontes: 1,2,3,4,5,6
Não retirar sem os devidos créditos